Em Fevereiro, três amigos e eu juntámo-nos para conversar. Por uma razão ou por outra, por trabalho mas quase sempre só por carolice, fizemos coisas juntos e gostámos de as fazer. Discutimos, então, a possibilidade, e a sempre terrível incompatibilidade de horários, de reunirmos para montarmos um programa de debate já que nos situamos em pontos distintos do espectro político. Apesar de algumas afinidades electivas somos muito diferentes. Mas afinal, o que é a cultura democrática, se não for ouvirmos aqueles que não pensam como nós nem fazem como nós, os que oferecem soluções com as quais não concordamos? Não é com a oposição e com o debate que se promove a racionalização dessas diferenças até que dela surja a matéria sobre a qual a vida pode assentar?
Tivemos a sorte, eles e eu, de já nos termos pegado, e digo isto no melhor sentido, por causa de pintura, de filmes, de autores, de religião e, claro, política – o que me ri com eles nestas discussões, algumas combustivas, só tem correspondência naquilo que com eles aprendo. Mesmo ali, durante o jantar, e enquanto os filetes de peixe galo desapareciam, conseguimos pegar-nos por conta da polarização do discurso político e da necessidade, ou inutilidade, de a discutirmos.
E isto vem a propósito de Cavaco Silva.
A Câmara de Lisboa organizou as comemorações dos 30 anos do Programa Especial de Realojamento [PER], a decorrer entre 18 de Março e 7 de Maio, data da assinatura do decreto-lei 163/93 que permitiu aquele programa de erradicação das barracas e bairros de lata, inicialmente dirigido às áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto.
A conferência «30 Anos PER: Génese e Impacto nos Territórios», com a presença e intervenção de vários autarcas, no Auditório da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, assinalou o arranque das comemorações. A sessão seria encerrada pelo Presidente da Câmara anfitriã, Carlos Moedas, à qual se seguiria a intervenção de Cavaco Silva, primeiro-ministro aquando da publicação do decreto-lei 163/93, e posteriormente Presidente da República. Se sublinho o óbvio é só porque há quem esqueça o respeito institucional e o significado de cultura democrática.
Refiro-me, claro, ao comportamento de Luísa Salgueiro, autarca de Matosinhos e presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses [ANMP], e de Ricardo Leão, presidente da Câmara de Loures. Ambos abandonaram ostensivamente o auditório, enquanto Cavaco Silva falava, a pretexto das críticas deste ao Pacote de Habitação do governo. Terá sido um abandono protestativo. Que Ricardo Leão o tenha feito, é muito mau. Que a presidente da ANMP, portanto representante de municípios de todas as cores políticas o tenha feito, é inaceitável.
O comportamento intolerante destes dois autarcas é um indicador de perda democrática. E vem reforçar a polarização do discurso político em Portugal que tem sido progressivamente promovida pelo Bloco de Esquerda, primeiro e desde há anos, pela geringonça e pelo Partido Socialista depois, e pelo Chega de André Ventura. Isto é, por aqueles que, em diferentes momentos da sua vida política, puseram o poder partidário à frente dos valores da democracia e continuam a fazê-lo.
Gostaria de lembrar a Luísa Salgueiro, a Ricardo Leão e a todos os que são dados a grandes gestos egoicos que em política, como na vida, não há actos sem consequências: os regimes democráticos estão em queda. E fechamos os olhos a isto. Fazêmo-lo porque o clássico urgente não permite dar atenção ao importante. Basta que pensemos.
Tivemos uma crise económica mundial. Em Portugal agravada pelo governo de Sócrates. Enquanto isso, a situação climática agravou-se. Chega a pandemia. Fechamo-nos em casa dois anos e emergimos para viver uma crise inflacionista. Vamos discutir o reforço do autoritarismo chinês? O crescimento da direita anti-democrática na Polónia? Os ataques concertados e opacos dos Estados não democráticos sobre as democracias? Não são urgentes até que sejam. Vemo-lo na governação, nos media ou nas conversas de café. Mas a radicalização do Partido Republicano prossegue. Como a melenchonização da juventude francesa enquanto os mais velhos se aliam a Le Pen. Em Portugal, o Chega cresce com a conivência socialista e a ambiguidade do PSD. Assim mesmo, o debate sobre a polarização do discurso político e o quanto favorece o crescimento das autocracias continua por fazer.
A democracia não se mantém por si mesma. Mantém-se por decisão: decisões que favorecem ou desfavorecem a cultura democrática. Sair da sala é uma má decisão.
PS 1: Confesso, não consigo perceber que, na habitação, não se trate o óbvio: aumentar a oferta. Não há modo mais eficaz de reduzir os preços. A burocracia, as licenças, a sobrecarga de impostos e taxas reduzem a construção. Sem construção não se aumenta a oferta. Querem impor mais regras? Sejam verdes e ecológicos fora das ciclovias pintadas: limite-se o preço por metro quadrado, seja em venda ou arrendamento, em função também da eficiência energética dos edifícios e fracções. A ver se acaba a miséria de gente a passar frio nas casas portuguesas como se vivêssemos na Inglaterra oitocentista de Dickens.
PS 2: Carlos Moedas inaugurou uma residência de estudantes cujo valor dos quartos se situa entre os seiscentos e muitos e os mil e poucos euros por mês. São preços altos? Sim, exorbitantes. Mas é uma residência privada. O privado faz-se com capital privado. Recordo às virgens indignadas: quanto mais oferta mais baixos os preços, mesmo os privados. Preocupemo-nos com o dinheiro público. Com a falta de residências públicas.