Estávamos em 2017, ano em que era responsável por dirigir um grupo terapêutico destinado a pessoas com doença neurológica, entre elas, várias pessoas sobreviventes de AVC, algumas já com sequelas de longo-prazo, outras com défices muito recentes que limitavam a capacidade de atenção, comunicação, memória, capacidade sensorial, entre outras. Naquela manhã a música tocava em volume baixo, serena, permitindo um acesso imaginário à tranquilidade e leveza de quem colocou uma venda sobre os olhos.
A proposta estava em cima da mesa. Jornais e revistas já de data ultrapassada iriam facilitar o acesso à dor, à raiva, à frustração, à tristeza, à revolta, entre outras emoções. O pedido era simples: rasgar. E foi nos minutos que se seguiram que assisti ao mais incrível potencial inconsciente humano. Uns rasgavam de forma vigorosa, escorrendo lágrimas sobre a face. Outros, ao ritmo da música. E ainda outros, por hemiplegia e neglect (paralisia ou fraqueza do membro) pediam o auxílio da sua própria boca, e rasgavam, rasgavam… Tudo isto a acontecer de uma forma totalmente impulsiva, uma vez que não foram apresentadas sugestões dirigidas sobre como rasgar ou o que fazer após rasgar. Era o impulso que ali reinava, a intuição, o corpo num só, que reagia perante os seus pedidos internos mais profundos.
Conhecer e apoiar pessoas sobreviventes de AVC envolve não só empatia, compaixão e tempo de qualidade e proximidade com as mesmas, como também envolve incluir e aliar os seus cuidadores significativos (núcleo familiar mais próximo ou alargado, amigos, vizinhos ou conhecidos) e restantes profissionais que apoiam nesta caminhada sem fim. Sem fim… Talvez uma frase penosa, certamente, num contexto como é o da patologia neurológica, mas não podemos esquecer, que tal como qualquer outra patologia deste foro, as suas lesões são, na sua maioria, crónicas, mesmo para as pessoas que, com o apoio da reabilitação, conseguem atingir uma elevada margem de recuperação (como os jovens, que, pelo fator idade, apresentam um maior potencial de reabilitação).
Quero aproveitar este espaço para um pequeno apontamento estatístico sobre a prevenção, a primeira chave para evitar este tipo de patologias. Talvez já todos saibamos como prevenir o AVC (hábitos de vida saudáveis, dizem os investigadores entendidos na matéria) mas, se o sabemos, porque é que o INE confirma que, em 2022, as doenças cérebro-vasculares estiveram na origem do maior número de mortes com cerca de 9.616 óbitos por AVC, representando 7,7% do total de residentes em Portugal?
A margem de recuperação ou manutenção da doença depende, não só da pessoa, como também de quem a rodeia, e é aqui que se encontra a segunda chave – “controlar” e “manter” os défices causados pelo AVC, redescobrir “o eu” e o seu potencial, e não permitir que sejamos controlados ou “engolidos” permanentemente pelas suas consequências físicas, cognitivas, emocionais ou sociais.
Nas alterações pós-AVC, ou outras associadas a doença crónica ou “incapacitante”, (para além das visíveis fisicamente) ocorrem transformações que, na maioria das vezes, só os familiares se apercebem (nem mesmo o próprio sobrevivente – trata-se da anosognosia, a incapacidade de reconhecimento do próprio défice), como as alterações de personalidade, do comportamento ou do humor, mesmo que subtis. E estas podem transformar a forma como desde sempre conhecemos o nosso familiar ou amigo.
A inversão de papéis ou o cuidar de quem cuidava de nós pode ser um processo tão penoso quanto altruísta, e é aqui, no encontro de ambos, que a psicologia clínica e a neuropsicologia podem apoiar, trabalhando lado a lado com as famílias, amigos e restantes profissionais envolvidos na reabilitação ou manutenção, consciencializando através da psicoeducação, gerindo expectativas e sobrecargas (da pessoa lesada e do cuidador).
E quando, para além das questões físicas (mais visíveis) surge a incapacidade comunicativa (como a conhecemos) – a afasia – que transforma e permite abrir espaço ao desafio, reconhecimento e valorização de outro tipo de comunicação, a não verbal. É aqui que surge o IPA – Instituto Português da Afasia, que não poderia deixar de mencionar, que desenvolve um trabalho de excelência nesta área, assim como todos os pequenos grupos dirigidos por profissionais existentes em instituições públicas ou privadas dos quais não se tem conhecimento, mas que desenvolvem um enorme trabalho de qualidade, valor e inclusão.
O apoio da psicologia permite abrir portas e janelas para a gestão do conhecimento do “novo” eu e do outro, para a consciencialização física, cognitiva e emocional. Entender o AVC como uma formação gratuita de longo prazo, onde, neste “doutoramento”, todos deveriam estar e ser envolvidos, desde a pessoa sobrevivente de AVC à proprietária do café da esquina que todos os dias frequentava. Uma transformação acontece, por detrás da incapacidade física (querer cortar um alimento, e não conseguir), por detrás da autoestima (olhar o espelho e não reconhecer a sua imagem), por detrás das relações sociais e profissionais (a forma como o outro me olha, crítica, o estigma e o preconceito) e por detrás das relações familiares e amorosas (como me aceitará a pessoa que caminha comigo há vários anos? Quererá voltar a tocar-me, a beijar-me, ou tudo ficará comprometido?).
Vários são os profissionais de medicina, terapeutas e outros profissionais envolvidos, como os enfermeiros e assistentes sociais, interessados em apoiar estas pessoas, mas sinto que muito do apoio que poderia ser prestado fica aquém. Pessoas isoladas nas suas casas, sem acesso à reabilitação ou manutenção do seu estado geral, quantas existem por aí? Que abordagens, que respostas, que qualidade de tempo necessitam os profissionais para prestar um apoio imprescindível? Que respostas existem pós-alta? Que políticas defendem estas pessoas e todos os envolvidos? Que profissionais de psicologia estão disponíveis para este apoio? Serão suficientes? Talvez um gestor de caso pudesse ser a solução.
A Portugal AVC disponibiliza apoio e informação gratuita aos sobreviventes e os seus significativos. Entrar em contacto com estas entidades é uma porta aberta para um maior apoio na reabilitação, manutenção e inclusão. A associação desenvolve um trabalho de imenso valor, trazendo-nos testemunhos que nos permitem refletir sobre a patologia e, quem sabe até, a identificarmo-nos com os mesmos. Aproveito para citar dois deles, retirado do livro E depois do AVC… a vida continua – 21 histórias de vida inspiradoras após o AVC, publicado pela associação:
- Testemunho de um sobrevivente – Recusei-me a ficar refém duma situação que eu não pedi, mas que era a minha realidade. Tinha duas hipóteses: podia focar-me e centrar-me nos meus problemas e chorar, lamentar-me e ter pena de mim mesma, ou então (re)agir e procurar soluções que me permitissem alguma recuperação física e emocional! Possuímos dentro de nós mais força do que nós mesmo imaginamos.
- Testemunho de um cuidador – Deixo-a fazer o máximo possível. Ainda lava a loiça. Nem sempre está limpa ou colocada no sítio certo. Mas o que é que isso importa? E, se alguma coisa estiver realmente suja, fá-lo-ei novamente quando ela não estiver lá. O que importa é que ela se sinta valorizada.
Não baixe os braços à prevenção, não tome por garantidas as suas capacidades físicas e cognitivas, permita-se a refletir sobre os seus hábitos de vida e a influência de quem o/a rodeia. Faça exercício físico, caminhe. Invista em si, invista em tempo de qualidade. Procure estar perto de quem sobreviveu. Informe-se. As decisões que tomar poderão não ser para hoje ou para amanhã, mas sim para ontem.
Andreia Cordeiro é psicóloga especialista em psicologia clínica e da saúde com formação em neuropsicologia e cuidados paliativos. Trabalha atualmente na Unidade Local de Saúde da Arrábida (antigo Centro Hospitalar de Setúbal), tendo exercido anteriormente em unidade de cuidados continuados integrados, centros de dia e estruturas residenciais para idosos.
Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.
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