1. É certo e sabido que um dirigente político progressista, eleito por um partido que tenha o vermelho como cor predominante e um punho, uma foice e um martelo (ou até, vá lá, uma estrela) como símbolos, nunca teve qualquer contacto com a corrupção ou qualquer outro crime económico-financeiro. Deve estar igualmente cientificamente provado (de preferência, por uma faculdade da ex-RDA) que um político de esquerda, que apenas tenta tirar aos abutres dos empresários e restantes capitalistas gananciosos para dar aos pobres e remediados do país, nunca se mete em negociatas que possam prejudicar o interesse público. É óbvio, porque sim, que todos os políticos, sindicalistas, militantes ou até meros simpatizantes dos ensinamentos de Marx e afins têm imunidade quanto à corrupção. Essencialmente porque a esquerda apenas quer e luta pelo bem do mundo sem querer absolutamente nada em troca.
Esta é, em suma, a síntese da superioridade moral da esquerda que explica muitos dos comentários que ouvimos nos últimos dias de figuras com Catarina Martins, Francisco Louçã ou de jornalistas que acreditam que a prisão de Lula da Silva pela alegada prática do crime de corrupção é um golpe e uma perseguição política — e não um ato de um sistema judiciário democrático que tem com missão escrutinar o poder executivo.
2. Esta visão (infantil, há que dizê-lo) demonstra antes que a esquerda tem claramente um problema com a luta contra a corrupção. Não é só na extrema-esquerda do PCP e do Bloco Esquerda, mas também numa parte do PS, que existe uma visão sectarista, preconceituosa e seletiva de quais devem ser os alvos do combate à corrupção. Nestas mentes brilhantes, os partidos da direita são uma espécie de aliados naturais da corrupção (por ADN, claro) por defenderem que o direito de propriedade, o comércio, o investimento privado e o lucro são essenciais ao progresso económico das populações.
Vamos ser claros: a corrupção não é de esquerda nem de direita, não é católica nem protestante, não é branca nem preta e não é do norte nem do sul. A corrupção atinge todos os países, partidos, grupos sociais ou raças. Como a prática da Justiça um pouco por todo o mundo tem provado.
A corrupção está essencialmente ligada ao poder — ao exercício desse poder durante demasiado tempo, aos abusos e aos desvios das funções públicas que estão atribuídas a determinada pessoa. Precisamente por isso, os alvos dos corruptores são, por regra, os titulares de cargos políticos ou públicos que detém ou o poder de decisão ou a capacidade de influenciar a decisão que interessa ao corruptor. Sejam eles vermelhos, cor de rosa, laranjas, azuis ou qualquer outra cor de quem tem o poder de decisão sobre a forma como os dinheiros públicos são gastos.
Por a corrupção ser uma atividade ilícita que leva à distorção das regras da concorrência, nenhuma economia capitalista digna desse nome pode pactuar com métodos que afetam a concorrência natural de um mercado aberto e colocam em causa uma justa distribuição de riqueza. A corrupção favorece os menos preparados (mas mais espertos) em detrimento dos melhores (e mais produtivos), premeia quem não segue as regras ao mesmo tempo que destrói qualquer ideia de meritocracia e fomenta uma concorrência desigual entre quem trabalha para oferecer o melhor produto ao melhor preço possível e quem tenta recorrer ao expediente fácil para enriquecer o mais rápido possível. A corrupção representa o oposto de uma sociedade justa e sã.
3. A Operação Lava Jato é um dos melhores exemplos do que acabo de afirmar. Para quem não sabe (ou se esqueceu), é importante recordar que a investigação concentrou-se desde 2009 num cartel de construtoras que geria informalmente as obras que eram lançadas pela Petrobras no mercado de obras públicas. Através de subornos que variavam entre o 1% e os 5% do valor base da obra, as principais construtoras brasileiras dividiam entre si os principais contratos num ambiente de concorrência totalmente inexistente.
Parte dos subornos eram distribuídos pelo Partido dos Trabalhadores (PT), de Lula da Silva, e pelo PMDB, de Michel Temer (que também está referenciado na Operação Lava Jato) e terão rendido, no total, um total de 6,4 biliões de reais (cerca de 1,5 mil milhões de euros) que foram transmitidos a políticos daqueles dois partidos.
Enquanto elogiam de forma bastante comovente a perfeição do sistema judicial português (perfeito só na teoria), os defensores nacionais de Lula atacam ainda a ilegitimidade do sistema judicial brasileiro, por não defender os direitos, liberdades e garantias de defesa dos condenados e julgar de forma muito rápida os respetivos processos.
Lula da Silva está longe de ter sido o único condenado a pena de prisão efetiva. Em toda a Operação Lava Jato, foram condenadas mais de 123 pessoas, sendo que o total das penas de prisão suplantam os 1.861 anos de prisão. Entre os condenados, encontram-se um número significativo de políticos do PT de Lula e do PMDB de Temer.
O ex-presidente brasileiro, portanto, foi investigado, acusado, julgado e condenado como tantos outros políticos brasileiros na mesma circunstância que Lula da Silva. E de acordo com as regras da República do Brasil.
4. Dizem os críticos ideológicos que o sistema judicial brasileiro não oferece garantias de defesa nem é próprio de um Estado de Direito. Este raciocínio deve-se essencialmente a duas razões:
- Lula foi preso após uma condenação da 2.ª instância e antes de esgotar todos os recursos;
- Não há provas diretas de que Lula da Silva tenha recebido o famoso triplex de Guarajá (litoral do Estado de São Paulo).
O primeiro ponto é facilmente rebatível. Como o Nuno Gonçalo Poças explicou aqui no Observador, a decisão de prender Lula da Silva após a condenação em 2.ª instância está de acordo com a jurisprudência brasileira — além de ser igualmente possível em países como os Estados Unidos, Grã-Bretanha e Alemanha.
Isto é, a prisão respeita a norma brasileira, sendo que é à luz exclusiva das leis e da jurisprudência da República do Brasil que o caso deve ser apreciado. E não de acordo com as leis portuguesas.
5. Por último, o comportamento do ex-presidente brasileiro nos dias que antecederam a sua prisão demonstram como Lula e os seus apoiantes confundem a República do Brasil com os interesses do Partido dos Trabalhadores.
Fazer do PT um escudo que o protegesse da Justiça, barricar-se nas instalações de um sindicato com uma moldura humana que, na prática, impedia qualquer intervenção judicial e fazer ponto de honra em entregar-se às autoridades um dia depois do prazo para a sua detenção esgotar-se. Tudo isto só demonstra como Lula encara o Estado brasileiro como seu, numa versão tropical do “L’Etat c’est moi” de Luís XIV.
Não há bem nenhum que Lula da Silva tenha praticado no Brasil que perdoe ou apague o mal da corrupção que lhe é imputado pelo sistema judicial brasileiro — e que cresceu com nunca dentro do PT enquanto Lula foi Presidente.
Que o diga José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil e ex-braço-direito do presidente Lula, condenado por corrupção no caso Mensalão e na Operação Lava Jato a penas que totalizam mais de 40 anos de prisão.
Será que Francisco Louçã ou Catarina Martins também acham que a condenação de Dirceu é um caso de perseguição política?
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