“A União Europeia entrou diretamente no conflito. (…) Hoje estamos a falar em dar armas à Ucrânia para atacar a Rússia ou a OTAN [NATO] colocar fronteira no território russo. Então nós vamos encontrar países que queiram paz: o Brasil quer paz, a China quer paz, a Indonésia quer paz, a Índia quer paz. Então tenho que pedir a estes países que façam a uma proposta de paz para a Rússia e para a Ucrânia”.

Lula da Silva em entrevista ao canal público chinês, 15 de abril de 2023

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As declarações do Presidente do Brasil sobre a Guerra da Ucrânia assumem relevância precisamente por terem sido proferidas por Lula da Silva — um homem que é apresentado pela esquerda portuguesa como um democrata e um herói que foi perseguido politicamente pelo aparelho judicial brasileiro, acusado injustamente de corrupção e que, personificando uma luta do bem (Lula) contra o mal (Bolsonaro), regressou ao poder por via do apoio popular da maioria dos brasileiros.

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O Brasil teve o pior dos dois mundos nas últimas presidenciais: escolher entre Bolsonaro — um líder extremista, demagogo e impreparado. E Lula — um líder igualmente populista que liderou um Governo durante 2003 e 2011 que, entre políticas que promoveram desenvolvimento económico, também foi complacente (para ser simpático) com um sistema de dinamizou a corrupção, o controle do Estado e o simples abuso de poder por parte do seu Partido dos Trabalhadores.

Houve muitos em Portugal que ignoraram a gritaria de Lula sobre os milagres da cerveja brasileira para resolver a Guerra da Ucrânia — ver aqui. Mas esse é o verdadeiro Lula que voltamos a ouvir nos últimos dias durante um périplo pela China e pelos Emirados Árabes Unidos a torcer e a deturpar a verdade histórica do que aconteceu e está a acontecer na Ucrânia.

Lula quer ser uma pomba da paz — um disfarce muito querido entre os esquerdistas — mas na realidade é um verdadeiro caixeiro-viajante, como demonstrarei mais à frente.

2 O mais extraordinário é ouvir as várias declarações de Lula da Silva porque aí percebemos bem como o fato de herói da democracia que lhe vestiram nas últimas presidenciais está muito esburacado. Logo a 14 de abril, Lula começou por dizer em Pequim que “é preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra”. O Presidente brasileiro quer que os americanos e a União Europeia comecem “a falar em paz (…) pra que a gente possa convencer o Putin e o Zelensky de que a paz interessa a todo mundo”.

Portanto, Lula preferiu não dizer nada sobre os seguintes factos:

  • A Rússia invadiu militarmente a Ucrânia a 24 de fevereiro de 2022 com forças militares terrestres, bombardeou vários pontos do país, chegou às portas de Kiev, ocupou inúmeras cidades e vilas no leste europeu e anexou de forma ilegal quatro regiões que fazem parte do território da Ucrânia;
  • As regras do direito internacional foram violadas de forma clara por Vladimir Putin. As Nações Unidas já aprovaram várias resoluções a condenar a Rússia, a última das quais foi aprovada a 24 de fevereiro deste ano com 137 votos a favor, sete votos conta e 31 abstenções. O Brasil, já com Lula empossado como Presidente da República Federativa do Brasil, votou a favor;
  • Mais de oito milhões de ucranianos foram obrigados a fugir do seu país e a procurar refúgio na União Europeia. A economia e as infra-estruturas ucranianas foram destruídas com a invasão russa. Houve ucranianos a morrerem de frio durante este Inverno devido a bombardeamentos russos cirúrgicos contra as infra-estruturas energéticas ucranianas.

No dia seguinte, a 15 de abril, Lula deu uma entrevista ao canal estatal chinês para apontar o dedo à União Europeia — o que implica apontar o dedo a Portugal — para dizer que “a União Europeia entrou diretamente no conflito.” Logo, nós portugueses, que também demos armas aos ucranianos para se defenderem dos invasores russos, também somos promotores da guerra, na lógica de Lula.

Pior: o Presidente brasileiro adere completamente à narrativa de Vladimir Putin e diz a um jornalista chinês que “hoje estamos a falar em dar armas à Ucrânia para atacar a Rússia ou a OTAN [NATO] colocar fronteira no território russo.”

Isto é, e partindo do princípio que a geografia (e o conhecimento histórico) de Lula não estão fora da realidade, deduz-se que não se esteja a referir à Finlândia (que já entrou para a NATO) e à Suécia (que está à espera de contornar o veto turco para entrar também para a NATO) como “território russo”.

Partindo desse princípio, só podemos concluir que Lula da Silva se está a referir à Ucrânia — que quer entrar para a NATO mas que ainda não teve o apoio dos Estados Unidos e da União Europeia para tal candidatura — como “território russo”.

Ou seja, no limite podemos partir do princípio que Lula aderiu totalmente à tese de Putin, proferida na noite da invasão de 24 de fevereiro de 2022, de que a Ucrânia não tem direito a existir enquanto Estado soberano. Nada mau para um herói da democracia quando a Ucrânia é um Estado soberano reconhecido praticamente por todos os países do mundo.

A 16 de abril, já nos Emirados Árabes Unidos, Lula voltou a vestir as suas vestes de pomba da paz para dizer que “quem começou a Guerra foram os dois países [Ucrânia e Rússia]”. Como a Guerra do Solnado, foram os militares ucranianos que tentaram chegar às portas de Moscovo, como bem sabemos…

E, atenção, a pomba da paz chamada Lula não está sozinha. Tem a companhia de outros países que “não promovem a guerra”. “O Brasil quer paz, a China quer paz, a Indonésia quer paz, a Índia quer paz.” É este o clube da paz que vai fazer uma proposta à Rússia e à Ucrânia.

E, finalmente, esta coreografia de Lula da Silva pela paz na Ucrânia culmina esta última segunda-feira (dia 17 de abril) com a visita de Serguei Lavrov a Brasília para convidar o Presidente do Brasil a visitar oficialmente Vladimir Putin em Moscovo — como Bolsonaro já tinha feito. E para agradecer o contributo de Lula para a paz, pois claro.

3 Vamos ser claros e diretos. Lula da Silva padece da mesma ‘doença’ comum a muitos esquerdistas alegadamente bem intencionados: o relativismo moral. Imbuídos que estão da superioridade (moral e material) das suas ideias, os esquerdistas desvalorizam sempre os meios para atingirem determinados resultados.

E qual é o objetivo de Lula da Silva? De certeza absoluta que não é a paz na Ucrânia. O objetivo estratégico de Lula é o negócio puro e duro. Lula quer aumentar as exportações brasileiras para a China e também para a Rússia e puxar pelo espaço económico dos chamados BRICS. Se tudo isso implicar apoiar Putin, Lula apoia.

Acredite, caro leitor. Lula da Silva não é um estadista. É um caixeiro-viajante disfarçado de pomba da paz.

Basta, aliás, ver o que foi fazer a Pequim:

  • Contrariando a antiga política de Bolsonaro de apoiar Trump contra a China, Lula foi assinar cerca de 20 acordos comerciais para reforçar ainda mais o facto de a China ser o principal parceiro comercial do Brasil. As exportações brasileiras já terão ultrapassado os 100 mil milhões de dólares em 2022, segundo o Financial Times. O Brasil vende soja (vale 30% das exportações brasileiras), carnes e combustíveis fósseis, entre outros produtos.
  • A China é também o maior fornecedor do Brasil com vendas totais de cerca de 60 mil milhões de dólares;
  • Foi apoiar Dilma Roussef como a nova presidente do Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS — a nova instituição financeira fomentada pela China para tentar rivalizar com o Banco Mundial (criado pelos Estados Unidos) na promoção da cooperação e da influência económica no resto do mundo. Esta nova instituição já aprovou investimentos superiores a 25 mil milhões de dólares.
  • E, finalmente, Lula da Silva utilizou a sua voz grave para berrar contra o “domínio do dólar” no comércio internacional, onde é a moeda utilizada em mais de 80% das transações, seguida pelo euro que vale mais de 10% das transações internacionais. Adivinha qual é a moeda preferida de Lula? A moeda chinesa, o yuan, claro. Que vale apenas cerca de 4% das transações internacionais.

4 O relativismo moral de Lula da Silva é precisamente esse: em nome dos negócios, é possível transacionar até os princípios e as regras do direito internacional que protegem a Ucrânia. Aliás, não é por acaso que, após o encontro com Lavrov, o seu homólogo brasileiro chamado Mauro Vieira tenha anunciado ao mundo que o Brasil está desejoso de ampliar as relações económicas com a Rússia de Putin e bater o recorde de 2022 de trocas comerciais superiores a nove mil milhões de euros.

E adivinhe as áreas, caro leitor: “na área de energia, em particular a energia atómica e pacífica. Exploração de espaço, agricultura, área farmacêutica. Nós vamos diversificar a nossa relação cultural, educativa”, anunciou Sergeui Lavrov.

Vá lá que a energia atómica é “pacífica”. Mas não deixa de ser curioso que Lula da Silva tenha feito questão de dizer nos últimos dias que tinha recusado vender misseis à Alemanha (para serem entregues na Ucrânia) e agora queira cooperar com a Rússia no desenvolvimento de “energia atómica” mas “pacífica”.

Só um último pormenor: sabe quais são os outros países da América do Sul e da América Central que Lavrov vai visitar, após sair de Brasília? Venezuela, Cuba e Nicarágua. Só países de referência em termos de liberdade política e económica e um exemplo de como combater a pobreza e a fome. São estes os aliados da Rússia naquela zona do globo — aos quais o Brasil está ansioso por se juntar.

5 Portanto, é este o Lula da Silva que, a convite do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, virá em visita oficial a Portugal para, entre outros pontos de agenda, discursar no dia 25 de Abril na Assembleia da República (AR).

No Dia da Liberdade, o Parlamento português vai ouvir um Chefe de Estado que claramente apoia a Rússia de Putin na Guerra da Ucrânia, que ataca a União Europeia pelo seu suporte à Ucrânia, que quer ter na China o seu best friend forever nos negócios, que quer alargar a sua relação económica com a Rússia (seguindo o exemplo da Venezuela, Cuba e Nicarágua) e que quer destruir o dólar como moeda internacional e colocar o yuan no seu lugar.

Realmente, faz todo sentido: nada como ter um Chefe de Estado que tem os braços abertos às maiores autocracias do mundo para falar no dia 25 de Abril em Portugal…

Só falta uma coisa para que a visita de Lula da Silva a Lisboa seja perfeita: receber e condecorar José Sócrates na Embaixada do Brasil e ainda aludir à Operação Marquês no seu discurso na AR como um exemplo de injustiça…

6 É verdade que, com a exceção da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, os interesses do Brasil estão desde há muito desalinhados da política externa de Portugal. O nosso país tem, pela sua opção atlantista, interesses diplomáticos historicamente alinhados com o Ocidente, nomeadamente num binómio claro que balança entre os Estados Unidos e a União Europeia.

Os brasileiros, por seu lado, querem desde há muito reforçar o bloco dos chamados países não alinhados (China, Índia, Rússia, Indonésia, África do Sul — os BRICS), posicionando-se com um dos grandes atores internacionais com os seus mais de 200 milhões de habitantes e os seus 8,6 milhões de quilómetros quadrados de território ricos em matérias-primas diversificadas.

Estas diferentes opções nunca impediram que Portugal e o Brasil reforçassem ao longo dos anos os seus laços históricos de irmandade linguística, cultural e também económica.

Contudo, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa não podem ficar calados. Devem expressar de forma clara que o povo português está ao lado dos ucranianos e que a União Europeia, que já concedeu o estatuto formal de candidato à Ucrânia, nunca aceitará a violação da soberania ucraniana por parte da Rússia. Isso é o mínimo dos mínimos.

Espero sinceramente que o relativismo moral de Lula da Silva não seja o único a estar em causa nos próximos dias.