Agora que caiu a máscara, o aldrabão está em vias de se transformar no acessório obrigatório de cada português. À menor dificuldade, grita-se, como faz o PS com Sócrates, “Fomos aldrabados!” e logo o problema deixa de ser nosso.

Quando António Costa declara sobre José Sócrates “Depois do que vi já, entretanto, e que o próprio Sócrates não desmente, concluo que ele, de facto, aldrabou-nos [ao PS]” não está apenas a dizer que Sócrates aldrabou mas também e sobretudo que ele, Costa, não é responsável por nada pois ele, Costa, não passa de um aldrabado.

Costa não disse que não percebeu ou que avaliou mal Sócrates, pois isso de alguma forma responsabilizava-o, quanto mais não fosse pela sua desatenção. António Costa diz sim que Sócrates aldrabou e, como é óbvio, a um aldrabado não se pedem responsabilidades. Mas será que não se devem pedir? Ou, melhor perguntando, foi apenas Sócrates a aldrabar? O PS e os seus dirigentes não aldrabaram, também eles, Sócrates, levando-o a acreditar que tudo lhe era permitido? E agora, quem está a aldrabar quem?

É tecnicamente impossível acreditar que Sócrates aldrabou o PS.

Em 2007, o PS reagiu ferozmente aquando da revelação das circunstâncias bizarras em que Sócrates conseguira a sua licenciatura.

O ministro Santos Silva falava de “jornalismo de sarjeta” e defendia um novo Estatuto para a classe. Mário Soares declarava que Sócrates era alvo de “ataques raivosos da direita”. O então ministro da Administração Interna, António Costa, e o secretário de Estado, José Magalhães, iniciaram um blogue na própria página do ministério onde faziam comentário aos comentadores. Tudo era normalizado pelo PS, a mentira passava a inverdade, os factos a cabala e a realidade a urdidura.

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A cada mês os “insólitos Sócrates” cresciam: a Assembleia da República descobria que existiam dois registos biográficos de José Sócrates, ambos datados de 1992. O reitor da UnI onde Sócrates se licenciara foi detido. Na sua posse tinha uma pasta com documentos sobre as licenciaturas de José Sócrates e Armando Vara. O PS não estranhou nem teve dúvidas e se alguém suspeitou de aldrabices ficou calado.

Também ninguém no PS achou estranho que agentes policiais levassem material da sede de um sindicato na Covilhã, cidade que ia ser visitada por Sócrates e também não foi suficiente para suscitar dúvidas aos dirigentes socialistas a revelação, em 2008, de que Sócrates teria assinado os projectos de umas casas cujos donos declaravam nunca o ter contratado ou sequer visto.

Nem as revelações sobre o caso Freeport, nem as bizarras condições de compra e venda, em nome da mãe de Sócrates, de uma casa na rua Castilho, em Lisboa, nem a tentativa de controlo e compra da TVI pela PT, nem a mirabolante história sobre a casa de Paris… nada disto foi susceptível de causar qualquer dúvida ao PS e a António Costa. Foi preciso a António Costa ir à cadeia de Évora e lá encontrar Mário Soares (na minha ignorância imaginava que apenas acontecia uma visita de cada vez) para se sentir pressionado por Sócrates. Desde o certificado académico de Sócrates com data de 1996 mas que incluía um impresso que só podia existir depois de 1998 que nada me causava tal estupefacção!

Agora os socialistas descartam Sócrates porque já não precisam dele. Ignoram a sua maioria absoluta e mesmo quando querem aludir de forma positiva a algo acontecido durante os seus governos omitem o seu nome, como fez Fernando Medina, secretário de Estado do Emprego e da Formação Profissional no governo Sócrates, entre 2005 e 2009, e agora, em 2022, transfigurado em ministro das Finanças, quando na recente apresentação do Orçamento referiu de forma críptica a reforma da Segurança Social feita durante o governo de Sócrates sem nunca referir datas ou nomes.

Ao contrário do que declarou António Costa, Sócrates não aldrabou o PS pois o PS não precisava de ser aldrabado: o PS estava disposto a fazer tudo para se manter no poder. E o que tinha a fazer era simplesmente fazer de conta que acreditava em Sócrates para desse modo o poder usar como talismã eleitoral. Agora que o PS tem um novo talismã, Sócrates passa a aldrabão. O chamado aldrabão conveniente.

PS. Ninguém no Governo se sente obrigado a explicar isto: 

22 de Outubro de 2021: «A extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) foi aprovada na votação final na Assembleia da República após a proposta do PS e BE ter sido votada na especialidade e alterado alguns pontos do diploma apresentado pelo Governo.»

25 de Novembro de 2021: «Extinção do SEF adiada seis meses. Parlamento aprovou a proposta do Partido Socialista de adiar por seis meses a extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).»

30 de Novembro de 2021: «Presidente da República aprova prorrogação do prazo de extinção do SEF.»

1 de Abril de 2022: «Novo Governo mantém intenção de concretizar reforma do SEF. Reforma visa a separação entre as funções policiais e administrativas de autorização e documentação de imigrantes, com o intuito de “mudar a forma como a Administração Pública se relaciona com os imigrantes”, pode ler-se no programa.»

2 de Abril de 2022: «Processo de extinção do SEF pode ser de novo adiado.»

13 de Abril de 2022: «Extinção do SEF está em curso. O processo de extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) já se encontra em curso, revela o Governo na proposta de Orçamento do Estado para 2022 (OE2022) entregue esta terça-feira no Parlamento.»

22 de Abril de 2022: «Extinção do SEF vai ser adiada pela segunda vez, sem nova data.»