A coisa mais radicalmente apolítica que há é a morte. O amor também o é, mas num grau infinitamente menor. Ela dá-se num indivíduo que abandona a comunidade, numa solidão única cuja experiência é literalmente indizível. Tudo o que se tenta dizer sobre a matéria – inclusive tudo o que a filosofia, ao longo dos séculos, sobre ela disse – depara-se com um abismo de sem-sentido. De facto, a morte é o paradigma do sem-sentido, daquilo de que o sujeito não consegue, faça ele os esforços que fizer, fazer sentido. É a negação em estado puro, inabsorvível pela psique. Dizer isto não é dizer que a morte é uma injustiça. Ao contrário. Da injustiça nós conseguimos fazer sentido – e opor-lhe um desejo de justiça. A morte não é justa nem injusta. Pura e simplesmente, vale a pena repeti-lo, não faz sentido. E, não fazendo sentido, não há boa nem má morte. Há apenas morte.
Com o sofrimento é diferente. E não falo sequer do sofrimento moral, que tem tonalidades particulares. Falo do sofrimento físico. Em si mesmo ele não representa uma saída única e irrepetível para fora da comunidade. O sujeito que sofre está ainda ligado a nós, até porque a experiência do sofrimento físico é uma experiência que, em graus diversos, todos nós partilhamos. Nesse sentido – no sentido em que aquele que sofre habita o nosso mundo, faz parte da nossa comunidade –, a experiência do sofrimento é também em parte uma experiência política. É uma experiência dizível, mesmo nos casos de sofrimento excruciante em que o sujeito deixa de poder sequer pensar na dor como algo que lhe acontece e se confunde por inteiro com ela. E, sobretudo, a comunidade pode e deve agir, se tiver meios para isso, no sentido de eliminar a dor. Eliminar a dor faz justamente sentido, um sentido que a comunidade deve primacialmente reconhecer como um seu dever maior e sobre o qual não deve, a que pretexto seja, hesitar.
Aristipo de Cirene, o filósofo, tinha para isto uma boa imagem: “Três são os estados relativos ao nosso temperamento: um, pelo qual sentimos dor, semelhante à tempestade no mar; outro, pelo qual sentimos prazer, parecido com a leve onda, porque o prazer é um leve movimento, comparável a uma brisa favorável; o terceiro é o estado intermediário pelo qual não sentimos dor nem prazer, análogo à calma do mar”. Face ao sofrimento físico excruciante que não apresenta possibilidade de remissão, é este último estado que deve ser buscado a todo o custo. E quando digo “a todo o custo”, quero dizer: correndo todos os riscos – nomeadamente a morte – implicados no atingimento desse estado.
Isto que disse até agora parece-me uma evidência. A partir daqui, a partir do momento em que a questão se coloca fora do plano do combate ao sofrimento físico radical e inescapável, tudo me parece muito mais duvidoso. Estamos aqui face a uma aporia, uma dificuldade, que é provavelmente irresolúvel. Legislar sobre a morte medicamente assistida é procurar fazer sentido de um sem-sentido – introduzir uma positividade na morte, que é negação pura –, o que, além de tudo, logo coloca a possibilidade fatal do arbitrário. E podem-se amontoar cláusulas sobre cláusulas, instâncias sobre instâncias, que a possibilidade do arbitrário não desaparece. Não quero com isto dizer que não perceba todos os argumentos a seu favor, que, na sua maioria, giram em torno da autonomia individual. Percebo-os – há vasta literatura filosófica sobre a questão – e, em larga medida, partilho-os. O problema é que eles ignoram – não podem deixar de ignorar – o carácter apolítico da morte, isto é, a intrínseca e irredutível resistência desta a qualquer ordem legislativa. Trata-se, convém lembrá-lo, de um acto de saída do nosso mundo comum, único e por definição irrepetível. Ora, ignorar isto, por mais impecavelmente racionais que os argumentos pareçam, é legislar sobre o ilegislável.
Um defeito em parte afim verifica-se naqueles que recusam a morte medicamente assistida sob o pretexto da sacralidade da vida. Os argumentos – aqueles que os católicos defendem, por exemplo – merecem ser levados a sério, mesmo em certos casos-limite. E não convém nunca esquecer a importância da voz da Igreja contra as tentações eugénicas que seduziram, a certa altura, os mais improváveis espíritos. Mas os defeitos de que padece a posição têm pontos de contacto com os da posição anterior, nomeadamente no facto de sustentarem uma legislação sobre o ilegislável (por meio de uma proibição).
Há, no entanto, uma assimetria entre as duas posições. A positividade da morte sustentada pela primeira alicerça-se em valores como a autonomia e a dignidade humana que valem apenas para a própria vida, já que supõem um universo de sentido que a morte, por definição, nega. Na segunda posição, pelo contrário, a morte não se vê afectada de qualquer positividade extraída da vida. Nesse sentido, ela é mais coerente. O problema, poder-se-ia dizer, é que a coerência nestas matérias pode, em certos casos, ser excessiva.
O que disse nos parágrafos anteriores assinala apenas a perplexidade face às tentativas de legislar, num sentido ou noutro, por relação à morte. E a perplexidade vem, como disse, de se tratar de uma situação única, irrepetível e radicalmente apolítica, insusceptível de legislação social. O único gesto que logicamente corresponde a tal estatuto é, quando o indivíduo julga por si mesmo, sem necessidade de atestação alheia, que a vida não tem condições para ser vivida, o suicídio, que dispensa a mediação social.
Não quereria acabar dando a ideia de um qualquer agnosticismo nesta matéria. Limitei-me a assinalar que, excepto nos casos de sofrimento irremissível e nas condições que apontei, onde a questão não me oferece qualquer dúvida, a maioria dos casos supõe uma legislação sobre a morte que é ilegítima. Transforma o acontecimento apolítico por excelência – a saída solitária deste mundo – num acontecimento político. O que dispensar, na medida do possível, a mediação do social, neste caso a mediação hospitalar – eventualmente o suicídio assistido, quando o outro não é possível –, não padece, por mais problemático que seja, de uma tal ilegitimidade.
Em todo o caso, uma coisa é certa: não há boa morte. Há morte, e a tarefa dos médicos é evitá-la, até aos limites que o bom-senso determina. A nós, cabe-nos, enquanto podemos, decidir se os devemos seguir ou não. E, como em tudo, é preciso sorte.