1 O assassinato a tiro de um negro em plena luz do dia numa avenida central de um subúrbio de Lisboa só podia despertar paixões. Sobretudo quando ele, Bruno Candé, era actor, tinha uma deficiência e deixa três filhos menores. Mais ainda quando, uns dias antes, a vítima e o agressor se tinham envolvido numa violenta discussão, que acabou em confronto físico e troca de insultos, alguns deles, segundo algumas testemunhas, de índole racista.

Para os activistas do costume isto é suficiente para convocarem manifestações a exigir justiça, pois não têm dúvidas: tratou-se de um crime de “ódio racial”. Aqui há uns meses, aquando de uma outra morte trágica, a de Giovani em Bragança, também fizeram o mesmo, mas afinal o crime, ao que a investigação depois apurou, não tivera motivação racial.

Já para os contra-activistas do costume, este é o bom pretexto para voltar a sair à rua a defender que Portugal não é um país racista. Contraprovas? Virtualmente nenhumas.

Este é naturalmente o caminho que não nos leva a parte nenhuma. Nem a uma discussão séria sobre racismo, nem a um julgamento sereno, nem à tomada das medidas mais adequadas para termos uma sociedade mais inclusiva. Devo aliás dizer mais: na base destas atitudes, desta necessidade pavloviana de reagir — e contra-reagir — só porque um branco assassinou um negro, estão também preconceitos, preconceitos que seja para condenar o agressor, seja para o defender, são no limite preconceitos racistas.

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2 Devo dizer que ao contrário de muitos não tenho grandes ilusões sobre a natureza humana e, por isso, não estranho a existência de preconceitos, mesmo de preconceitos racistas. Há projectos que mostram que mesmo quem pensa não ter nenhum preconceito acaba por ser apanhado numa esquina qualquer. Agora se sairmos do nosso educado século XXI – sim: do nosso educado século XXI e das nossas sociedades civilizadas – e recuarmos no tempo facilmente descobriremos que todos os grupos humanos tendem não só a estranhar como a excluir outros grupos humanos. Ou então a submetê-los, discriminá-los ou, quando era tempo disso, a escravizá-los.

Esse preconceito pode ser cultural, religioso, regional, nacional, étnico e, naturalmente, racial. Ou pode ser uma mescla de tudo. Tal como pode misturar-se com outros preconceitos de outra natureza que não são hoje para aqui chamados.

Agora uma coisa é clara: não são um exclusivo do homem branco. Não perceber isso é confundir o racismo que de certa forma nasce com todos nós, e que todos nós temos de conscientemente combater, com o racismo enquanto construção científica e/ou política, um fenómeno que esse sim podemos associar a um tempo histórico bem definido e a formações políticas e sociais bem caracterizadas.

Quando saímos destes parâmetros e achamos que o pecado da discriminação tem uma só cor de pele, então o caldo está entornado.

3 Tomemos por exemplo a história de Remy Adekoya, filho de pai nigeriano e mãe polaca. Num texto que publicou recentemente recorda que tendo crescido em Lagos, a capital da Nigéria, estranhava que o pai, um arquitecto que pertencia à classe alta, não considerasse sequer em votar em alguém reconhecidamente competente da minoria Igbo, apenas por ele pertencer à maioria étnica do país, os Yoruba. A sua dedução é que em Lagos nunca ninguém como Sadiq Khan, o actual mayor de Londres, que é de uma minoria étnica, poderia algum dia ser eleito. Acho que poderíamos tirar a mesma conclusão para Portugal relativamente ao nosso primeiro-ministro.

Olhando para estas diferentes situações falaríamos de relações maioria-minoria, de tensões étnicas, porventura raciais, e discutiríamos civilizada e ordeiramente como enfrentá-las. Afinal, se tivermos presente a história dos últimos 30 anos, os maiores massacres na Europa foram inter-étnicos (na antiga Jugoslávia), tal como o maior genocídio foi em África e foi inter-étnico (no Ruanda). Em qualquer dos casos o ódio que armou os assassinos não seria muito diferente de um ódio racial.

Porém num caso tínhamos caucasianos, no outro africanos. Podemos usar a mesma linguagem? Há quem ache que não. Nada como o twitter para se apanhar o espírito do tempo e esta semana, cá pelo burgo, alguém sentenciou: “Pode uma mulher ser sexista? Pode um negro ser racista? Repitam comigo: Não porque não beneficiam das estruturas de poder inerentes ao género e à racialização! Leiam, estudem, eduquem-se, pelo amor de Deus!

A delícia desta síntese (deixemos de parte o sexista, como homem basta-me uma guerra de cada vez…) é que ela deixa clara a lógica do pensamento dos novos movimentos identitários. Primeiro, há aqui um claro tributo à forma marxista de pensar, à fantasia do opressor e da vítima, só que agora no lugar das “classes oprimidas”, mais exactamente do proletariado, foram colocadas as mais variadas “minorias oprimidas”. Depois, como já notou Diana Soller, nela somos obrigdos a subscrever a tese “Orientalista” segundo a qual nas sociedades ocidentais há uma permanente perpetuação e reprodução do colonialismo imposta pelas maiorias brancas, eternamente culpadas de todos os males.

A partir do momento em que estabeleço os princípios desta guerra – porque é de uma guerra que se trata –, eu abandono o antirracismo igualitário de um Martin Luther King no seu discurso “I have a dream” – “Eu tenho um sonho de que, um dia, nas rubras colinas da Geórgia, os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos senhores de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade. Eu tenho um sonho de que meus quatro filhinhos, um dia, viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de sua pele e sim pelo conteúdo de seu caráter” – para assumir, queiram ou não queiram, a desigualdade dos grupos “racializados”.

4 Neste ambiente Bruno Candé funciona às mil maravilhas – para os dois lados, como estamos a ver este fim-de-semana. O essencial porém escapa-nos.

Tal como Alexandre Homem Cristo também acho que não devemos ter medo dos números e de recolher dados sobre as minorias étnicas. Devia acontecer já nos próximos Censos, o que infelizmente não vai acontecer, o que permite que ainda há pouco tempo eu tenho lido a notícia ridícula de que grande parte dos infectados com Covid na Grande Lisboa eram estrangeiros. Notícia paradoxal num tempo de cidade esvaziada de turistas, como se não soubéssemos que a maioria dos infectados viviam nas 19 freguesias onde também se concentram os imigrantes africanos. Mas isto sou eu que digo que ando por vezes no comboio da linha de Sintra fora de horas e passo a ser a minoria étnica dentro da carruagem. Números não há. Mesmo o pouco que há, como o o perfil escolar dos alunos de etnia cigana, a meu ver deixa muito a desejar.

Sendo assim, discutimos palpites sobre discriminação nas escolas, nos empregos, no acesso à habitação, ou à saúde, ou mesmo à segurança social. Mas também sabemos pouco sobre a estrutura familiar destas minorias – e sabemos como ela é importante para o sucesso escolar, por exemplo – ou sobre o seu contributo para a natalidade. Por isso, quando discutimos o racismo na sociedade portuguesa, discutimos percepções ou então inquéritos. Se quase um terço dos portugueses, interrogados no quadro do “European Social Survey”, considera que “há grupos étnicos ou raciais por natureza mais inteligentes”, que posso eu dizer senão considerar que há de facto preconceitos racistas profundamente enraizados na sociedade portuguesa?

Mas, ao mesmo tempo, quando no mesmo inquérito se considera que haver “culturas, por natureza, mais civilizadas que outras” é sinal de racismo, quer está a delirar foi quem delineou o inquérito. É uma formulação que nega a própria ideia de progresso, que faz equivaler uma cultura que aceita o canibalismo, ou o esclavagismo, ou a excisão, ou, ou, ou, a tudo aquilo que fomos considerando avanços civilizacionais nos últimos séculos, para não falar nas últimas décadas.

5 Não tenhamos ilusões. Não há só uma agenda antirracista. A minha é democrática e liberal, tal como a de Luther King idealiza uma sociedade de iguais em direitos e deveres, e não me pede nem bilhete de identidade, nem para ver se no meu DNA há genes não caucasianos.

A agenda da “culpa branca” (ou se preferirem, do “privilégio branco”, White privilegie, um termo introduzido em 1988 por Peggy McIntosh) não só alimenta a vitimização das minorias, como cria um clima de guerra identitária que não visa a igualdade, muito menos a justiça, antes a subversão da ordem democrática e liberal. O capitalismo é a sua eterna besta negra.

E já agora não me interessa muito discutir se Portugal é ou não um país racista (qual é a definição para país racista? é o quadro legal? são os comportamentos? é a percentagem de racistas?) e ainda entendo menos o debate sobre “racismo sistémico”, uma importação de outras paragens que sem números não leva a lado nenhum. Em contrapartida gostava mais de perceber como foi possível a “invisibilidade” do problema da doença nos bairros pobres da periferia de Lisboa durante tantas semanas, de perceber os bairros da Jamaica e todos aqueles em que a polícia só entra para fazer rusgas, de perceber o mundo da construção civil, da grande distribuição, das limpezas e das empresas de segurança.

Infelizmente não está na tradição portuguesa estudar e depois falar. Pelo contrário: por cá as conclusões tiram-se mesmo sem saber o que se passou, como está tristemente à vista com o caso de Bruno Candé. Abutres.