Quando integrava o gabinete do último Governador de Macau surgiu a ideia de promover na cidade uma exposição de dinossauros robôs como a que o meu amigo Galopim de Carvalho concebera e realizara com tanto êxito em Lisboa. Na nossa intenção estava sobretudo a população escolar, numa cultura e cidade que tem a educação no seu âmago. Ideia logo apoiada pelo Governador, que certeiramente decidiu a instituição que deveria assumir a realização logística do evento, o Museu Marítimo de Macau, então dirigido pelo oficial de Marinha Rui Sá Vaz, dinâmico e entusiasta nas iniciativas em que se empenhava. Responsabilizado pelo apoio e acompanhamento do projecto, propus e foi aceite que convidássemos o Professor Galopim de Carvalho para se encarregar da concepção, direcção científica e animação pedagógica. E sugeri procurarmos os apoios financeiros necessários junto das personalidades que considerámos sensíveis ao interesse da iniciativa. E foi assim que pedi para ser recebido pelo Doutor Stanley Ho. Telefonei ao Senhor Moraes Alves, secretário e uma das pessoas mais próximas do benemérito, uma figura portuguesa há muitos anos radicado em Macau, que viria a ser presidente do Leal Senado. Conhecia-me bem também por eu ter sido o oficial miliciano que dirigira a recruta militar de um filho dele, o Júnior, hoje no Brasil, saída profissional e destino tradicional de muitos dos jovens de Macau. Também por isso, mas sobretudo por eu integrar o Gabinete do Governador, fui logo recebido.

O gabinete de um dos homens mais ricos do mundo era de uma sobriedade que me surpreendeu. Moraes Alves apresentou-me, ele estendeu-me a mão, cumprimentei-o e seguramente pela elegância e gentileza que o distinguiam disse ter uma ideia de mim nos anos sessenta. Sentou-me à sua frente e perguntou-me ao que vinha. Expliquei-lhe tudo muito bem. Perguntou-me: ”É para os miúdos das escolas?“ Confirmei. “Quatro milhões, o Senhor Dr. acha bem?” Fiquei sem fala.

Juntámos a esse apoio ainda os do Doutor Edmundo Ho, dois milhões, e do Senhor Ne Fok, mais um milhão…

Fizémos a maior e melhor mostra no género do mundo. O meu amigo Galopim de Carvalho e a Mulher passaram connosco em Macau o que ainda hoje nos lembram como duas das melhores semanas da vida deles. Vieram e tivémos connosco os técnicos japoneses. E ainda sobrou dinheiro para outros projectos do Museu.

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A exposição foi um sucesso enorme na cidade, não apenas pelo interesse e a alegria tão gratificante das crianças mas pelo entusiasmo da população chinesa, típico perante iniciativas do género, pela sua novidade. Maior naquela época em que ainda não viajava pelo mundo como hoje viaja com a curiosidade ávida de chineses.

Perante o valor dos apoios, veio como de costume a desvalorização ignorante muito nossa: “Dão para se exibirem”. A minha explicação não podia convencer quem não queria ser convencido. Porque não dão assim, regra geral, em Portugal os muito ricos? Foram inúteis os meus fundamentados argumentos para explicar o valor e facilidade das dádivas. Para além da generosidade e compaixão que brotam do coração de seres humanos em todas as latitudes, trata-se ali, regra dominante, de uma relação diferente, mais desligada, digamos, com o dinheiro. Não se colam a ele, à sua acumulação. O dinheiro é um meio, não um fim. Para o chinês o relevante é… ganhá-lo. Diria mesmo que é o acto lúdico de o ganhar. Por isso alguns deles também o perdem imperturbavelmente num jogo. E ao contrário do que pensa logo uma mente portuguesa inadvertida, quando dão, não é para exibirem a sua fortuna aos outros, mas para a exibirem a si próprios. Algo como Max Weber viu nalguns grupos protestantes e referiu na obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. A fortuna é para um chinês a evidência lúdica para si próprio de uma capacidade pessoal. Mesmo, porventura, de uma qualquer escolha do Céu. E é certificado de um serviço à comunidade. Os leitores não imaginam o montante de dinheiro que se conseguia em Macau na tradicional Marcha de Caridade anual!

Muitos anos mais tarde participei com os Curadores da Fundação Jorge Álvares numa reunião de trabalho com Stanley Ho na sua casa do Estoril. O mesmo conforto sóbrio, austero mesmo. A idade dele já ia muito avançada, mas continuava elegante e distinto como o vira sempre. Das pessoas notáveis presentes, incluindo o seu competentíssimo mais do que colaborador, Doutor Ambrose So, a única que não teve um único lapso de memória, que não esquecera pormenor das condições estabelecidas, foi Stanley Ho. Nos seus olhos cintilava inteligência, o fulgor que me impressionara 50 anos antes.