Na segunda leitura da Missa do domingo passado, lia-se: “as mulheres submetam-se aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja, seu corpo, do qual é o Salvador. Ora, como a Igreja se submete a Cristo, assim também as mulheres se devem submeter em tudo aos maridos” (Ef, 5, 21-32).

Na mesma liturgia recordou-se que, depois de Jesus de Nazaré ter pronunciado, na sinagoga de Cafarnaum, o discurso eucarístico, “muitos dos seus discípulos tornaram atrás e já não andavam com ele” (Jo 6, 66). Pois bem, também agora foram tantos os fiéis e não fiéis que se escandalizaram, por ouvir dizer que as mulheres cristãs “se devem submeter em tudo aos maridos”, que a Conferência Episcopal Portuguesa publicou, no passado dia 24, uma Nota “A propósito da leitura de São Paulo sobre as mulheres”.

Improvisados exegetas, que só agora descobriram um texto bíblico com dois mil anos, fizeram crer que São Paulo, o maior apóstolo de todos os tempos, teria negado o princípio da igualdade e ofendido a dignidade feminina. Em plena crise humanitária no Afeganistão, também não faltou quem questionasse o estatuto da mulher cristã em comparação com as seguidoras de Maomé, às quais, pelo menos em certas versões mais fundamentalistas da sua religião, é exigida total obediência ao cônjuge. Recorde-se que a palavra ‘muçulmano’ procede do verbo árabe ‘aslama’, que quer dizer, literalmente, ‘submetido a Deus’. Por isso, o romance em que se imagina um presidente francês islâmico, que impõe um regime teocrático, a sharia e a poligamia, intitula-se, precisamente, Submissão (Michel Houellebecq, Submission, Flammarion, 2015).

Para a exegese do referido trecho paulino, é necessário ter em conta o seu princípio – “sede submissos uns aos outros no temor de Cristo” (Ef 5, 21) – bem como a sua continuação: “Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela. (…). Assim devem os maridos amar as suas mulheres como aos seus corpos. Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. Ninguém, de facto, odiou jamais o seu corpo, antes o alimenta e lhe presta cuidados, como Cristo à Igreja; porque nós somos membros do seu corpo. Por isso, (…) serão os dois uma só carne. É grande este mistério, digo-o em relação a Cristo e à Igreja” (Ef 5, -32).

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A obrigação imposta aos maridos – “amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” – é, na realidade, mais forte do que a submissão pedida às mulheres. São Paulo exige ao homem que esteja disposto a dar a vida pela sua mulher e que a ame como se ama a si mesmo: “ninguém, de facto, odiou jamais o seu corpo, antes o alimenta e lhe presta cuidados, como Cristo à Igreja”. O corpo não é um objecto que se possui, mas que se é e, por isso, quem o maltrata, é ao sujeito que ofende. Os membros de alguém não são apenas dele, mas são ‘ele’, a própria pessoa. O relato bíblico da criação de Eva, a partir da costela de Adão, é outra expressão da igualdade de ambos: se a mulher procede do corpo do homem, então é igual a ele, tem a mesma natureza e dignidade.

Por outro lado, quando se ama alguém, o outro não é tido por igual, mas superior: quem ama submete-se, apaixonadamente, à pessoa amada. Neste sentido, a submissão é expressão do amor verdadeiro e, portanto, da caridade cristã: “Não se trata de mandar submeter ou depreciar ninguém, mas de cuidar e dar prioridade no dom e no serviço do dia a dia. (…). O verdadeiro exemplo e medida de submissão e serviço, como dom e amor, é o próprio Jesus, para os esposos e para qualquer outro membro da família e da Igreja” (Nota da CEP, 24-8-2021).

Há quem explique a expressão de Saulo de Tarso recorrendo à mentalidade da época. Não parece ser um argumento convincente, porque Jesus de Nazaré contradisse muitos usos e costumes do seu tempo. Fê-lo com a sua vida célibe, que era contrária ao que era habitual; curando ao sábado, contra o parecer dos fariseus; falando a sós com a samaritana, sendo judeu; perdoando a mulher surpreendida em flagrante delito de adultério; promulgando um mandamento novo, numa ousada afirmação da sua divindade, etc.

Também em relação à questão conjugal, Cristo foi contra as tradições de então, ao revogar o repúdio. Que esta prática, semelhante ao divórcio, era lícita e até praticada pelos justos, prova-se pelo facto de São José ter decidido repudiar Maria, por estar grávida de um filho que não era dele. E que a doutrina matrimonial cristã era chocante, sobretudo para os homens, também é evidente, pelo comentário que fizeram os que ouviram o Mestre proclamar a indissolubilidade matrimonial: “se tal é a condição do homem a respeito da sua mulher, não convém casar” (Mt 19, 10). Como era o homem quem podia repudiar a mulher, a proibição do repúdio punha fim à predominância masculina no casal e restabelecia a igualdade de direitos entre os dois cônjuges.

Que concluir, então? São Paulo é um dos maiores santos de todos os tempos e a sua doutrina não só é perene como actual, como palavra de Deus que é. Quando proclama a Boa Nova ao mundo, tem em conta o respectivo contexto cultural. Por exemplo, elogia os atenienses que levantaram um altar ao Deus desconhecido, porque temiam que, não obstante a abundância das divindades do Olimpo, algum Deus tivesse ficado esquecido e deles se vingasse com algum terrível castigo. Uma leitura superficial poderia levar a crer que Paulo aprovava o politeísmo helénico, ou a sua irracional superstição, quando, na realidade, apenas se serve dessa circunstância, decerto caricata, para proclamar a fé cristã, a única que revela o verdadeiro “Deus desconhecido”.   

Outro exemplo é o modo como o apóstolo procede com Onésimo, um escravo que fugira ao seu senhor, e que Paulo acolhera, catequisara e baptizara. Ao devolvê-lo a Filémon, Paulo de Tarso não extingue a escravatura, até porque não tinha poder para o fazer. Também não exige a sua libertação, em cujo caso estaria a criar um precedente que poderia levar à falsa conversão dos escravos que, sem fé, pedissem o baptismo para se verem livres dos seus senhores. Que fez então o apóstolo? Escreveu a Filémon, também ele cristão e ‘dono’ do foragido Onésimo, e exigiu-lhe que perdoasse o servo fugitivo – que, segundo a praxe, deveria ser condenado à morte – e que o recebesse e tratasse já não como seu escravo, mas irmão, porque o era agora em Cristo. Ou seja, não aboliu de iure a escravatura – não tinha tal autoridade – mas sim de facto.

Mutatis mutandis, o mesmo se pode dizer do casamento. São Paulo não tinha dúvidas sobre a igual dignidade do homem e da mulher, princípio irrenunciável dos direitos humanos, que encontram no Cristianismo o seu fundamento e principal suporte doutrinário. O apóstolo de Tarso, expressamente, proclamou esta igualdade: “todos vós sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, pois todos os que fostes baptizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo. Não há judeu, nem grego; não há servo, nem livre; não há homem, nem mulher; todos vós sois um só em Jesus Cristo” (Gl 3, 26-28). Esta é a bimilenária doutrina e tradição da Igreja, que tem na devoção mariana a mais bela e significativa expressão do amor e respeito cristão por todas e cada uma das mulheres.

São Paulo não tinha, contudo, autoridade para instituir, juridicamente, a igualdade dos cônjuges. Com efeito, segundo o Direito Romano, a mulher passava da dependência do pai, sua ‘cabeça’ enquanto solteira, para a do marido, que era a ‘cabeça’ da mulher casada. Não obstante ser esse o status quo, o apóstolo dos gentios exige aos cristãos que, na experiência gozosa do amor de Deus e na prática efectiva do mandamento novo de Jesus, transformem a relação de poder, a que estava tradicionalmente ligado o casamento – Friedrich Engels, muito mais tarde, desenvolverá esta tese – numa relação de amor, em que marido e mulher sejam reciprocamente “submissos” no amor de Cristo (Ef 5, 21), na igualdade da sua comum natureza e dignidade de filhos de Deus.