Acho o conceito do programa SuperNanny uma aberração total. Sei que não estou sozinha, mas também sei que a direcção de programas da SIC insiste em manter a série no ar. Contra tudo e contra todos, assume publicamente que só lhe importam números, shares, lucros, likes e afins. Dinheiro, montra e casa cheia, quero dizer. Mais nada.

As crianças e os seus direitos pouco importam. Aliás, não importam rigorosamente nada, e a prova é a surdez total perante vozes como as de responsáveis da Unicef e do IAC, bem como a de Rosário Farmhouse, presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos das Crianças e Jovens (CNPCJ) e de Eduardo Sá, psicólogo, entre tantos outros que tentam a todo o custo sensibilizar a direcção de programas para os maus tratos que as crianças sofrem durante a exposição televisiva e se podem perpetuar depois, no seu quotidiano, quando estão em família, na escola, na rua ou no centro comercial, onde passam a ser reconhecidas e apontadas a dedo.

A lógica implacável dos donos da SIC e dos (ir)responsáveis por estes programas é: tudo o que concorra para aumentar as audiências, a SIC quer e a SIC faz. Acham, naturalmente, que a SIC pode. Se calhar até pode, mas não deve. Mesmo quando os patrocinadores desistem logo após o primeiro episódio e deixam de apoiar o programa, a estação não recua nem vacila. Muito pelo contrário, redobra a aposta.

Corine de Farme, a marca que tinha o patrocínio principal do programa SuperNanny retirou todo o apoio argumentando que “o tumulto social em torno do mesmo não é compatível nem com a imagem da nossa empresa, nem com os nossos objectivos comerciais”. Ainda bem que há marcas destas, com gestores como estes. Ainda bem que nem todos são como estes senhores da SIC, que investem em arenas inconcebíveis em que os novos gladiadores são pais e filhos a lutarem entre si (em lutas desiguais, note-se) ultrapassando muitas vezes todas as fronteiras racionais.

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Tal como na Roma antiga o fenómeno colectivo despertava paixões e ódios, convocando para as bancadas legiões de voyeurs adeptos de lutas sangrentas de contornos bizarros, também programas como SuperNanny atraem a pior de todas as faunas. Por um lado os mesmos voyeurs, numa versão aparentemente mais sofisticada, agora confortavelmente sentados à distância, bovinamente apetrechados de comandos e televisões de ecrã gigante com nitidez extrema; por outro lado os mesmos indigentes (a)morais que tudo toleram e nada condenam porque gostam de ‘ver sangue’. Sobretudo quando sentem que estão em multidão, massivamente, passivamente a assistir aos massacres.

A violência emocional e psicológica tem tantos contornos quantos aqueles que a cometem. Sei e todos sabemos de casos sinistros deste tipo de violência. Basta andar uma semana para trás, quando se descobriram os tenebrosos pais de 13 filhos que os mantinham acorrentados e seviciados em casa, sem poderem dormir nem comer, ou ir à casa de banho. Todos falamos na ‘casa dos horrores’ e o epíteto parece consensual, mas há muitas outras casas de horrores onde as crianças não passam fome nem são obrigadas a permanecer semanas, meses a fio sobre os seus próprios dejectos, nem tão pouco são forçadas a marchar para trás e para a frente durante noites sucessivas, mas onde são igualmente maltratadas.

Digam o que disserem, argumentem o que argumentarem, programas como SuperNanny estão mais próximos da ‘casa dos horrores’ do que do consultório de bons psicólogos, onde de forma discreta e eficaz se ajudam pais e filhos a viver com mais qualidade, a ultrapassar as suas dificuldades e a superar as suas desavenças sem verem as suas fraquezas devassadas e expostas ao mundo.

Se acham que exagero, tentem imaginar a balbúrdia mundial que gerariam todos os pais e mães que à face da Terra são confrontados com filhos que fazem birras porque não gostam de obedecer nem de comer, de dormir, de tomar banho ou de acordar cedo para ir para a escola (e todos nós, pais, nos confrontamos com isto e muito mais), se decidissem ir a correr para a porta de uma televisão, arrastando os filhos consigo e oferecendo (vendendo!) a sua história a troco de um suposto conselho prático.

Se em vez de procurarem perceber as razões das birras ou a natureza das suas próprias falhas pedindo ajudas coerentes, consistentes e consequentes em gabinetes de educadores, de psis e de outros especialistas, desatassem a exibir os filhos e as suas dificuldades perante gente viciada em programas tóxicos. Seria a loucura total pois ao contrário do que dizem aqueles que advogam a bondade de programas manipuladores e perversos como SuperNanny, nada do que possa ser dito ou feito num contexto de exposição e violação de privacidade tem efeitos construtivos e resgatadores.

Não vi os programas no ar nem nunca os vou ver. Googlei toda a polémica internacional a propósito das séries feitas noutros países, depois passei para o caso nacional e bastou-me ver fragmentos, mais os vídeos promocionais, para perceber a extensão da miséria humana de quem se vende a si e aos seus a troco de mil euros, bem como a vacuidade dos conselhos da mulher que faz de supernanny. Só diz banalidades. Só debita o que todos já sabemos e já experimentamos. Não só não acrescenta absolutamente nada, como o seu discurso está ultrapassado. Mais, a sua pose é ridícula. Toda ela é a caricatura de uma ama atavicamente atrasada, provinciana, pretensiosa e cheia de artificialismos. Nem nos filmes antigos, nem nos romances de cordel se encontram figurões destes.

Apesar de não acrescentar nada a ninguém, a SIC aposta nesta mulher e nos seus supostos conselhos porque sabe muito bem os frutos que quer colher. Sob uma aparência de bem, de quem quer contribuir para ajudar pais e filhos a lidarem melhor uns com os outros, aproveita-se das fraquezas humanas para a devassa da vida privada. Os donos da SIC e os (ir)responsáveis por reality shows e séries como esta sabem que espreitar pelo buraco da fechadura é uma tentação universal e, por isso mesmo, derrubam portas e paredes para exporem as vidas dos outros, especialmente dos mais frágeis, que nem sequer compreendem que estão a ser vítimas de maus tratos.

Concordo em toda a linha com Eduardo Sá, quando fala em maltrato, e sinto repugnância pelos critérios adoptados pela direcção, produção e apresentação de SuperNanny. Tenho pena dos pais e mães que precisam desesperadamente de mil euros e vendem os filhos na esperança de que eles tenham medo de um papão penteado com rabo de cavalo, óculos de massa e dedo acusador. Tenho pena das crianças que ficam famosas pelos seus defeitos e, por isso, marcadas para a vida (qual destas crianças se orgulhará mais à frente de ter ido à televisão e se ter tornado célebre por fazer birras, dar pontapés na mãe ou levantar a mão ao pai?), tornando-se presas fáceis entre pares mal intencionados que apanham as suas fraquezas e redobram os actos de bullying. Tenho, acima de tudo, pena desta gente que inventa e protagoniza programas de mau gosto e má fama.

Não sou psicóloga, mas sou há muitos anos voluntária em instituições que funcionam em comunidades vulneráveis e dão suporte moral, emocional, psicológico e educativo a crianças e jovens que vivem com graves dificuldades ou são filhos de famílias muito disfuncionais. Sei de casos terríveis de pais que batiam nos filhos com chicotes eléctricos só porque eles próprios estavam sob efeito de álcool ou drogas; conheci e conheço pessoalmente pais e mães vítimas de espancamentos dos próprios filhos, mas também muitos jovens que foram condenados a penas desproporcionadas por trazerem más notas para casa.

Há mais de uma década um destes jovens era literalmente pendurado na corda da roupa, suspenso sobre o vazio de uma altura de três andares, sempre que as notas não conferiam com as expectativas do pai. Pendurado como um Cristo, ali ficava sozinho com os seus pavores e vertigens até o carrasco voltar a abrir a janela para o retirar do castigo.

Todos estes casos de que falo foram acompanhados por especialistas que nunca revelarão nomes nem detalhes que permitam saber de quem estamos a falar. Por isso mesmo e porque foi possível guardar e manter o anonimato, todos foram resgatados e conseguem agora viver uma vida mais normal e menos adversa. As marcas continuam lá e guardam todas as cicatrizes, mas não terão que lidar nunca com feridas expostas ao mundo.

Foram reabilitados (falo dos pais e dos filhos, por incrível que isso pareça, pois uns e outros foram sujeitos a tratamentos e todos foram capazes de superar traumas incrivelmente profundos) e isso foi possível graças a bons especialistas e a um tempo demorado, em que se trabalharam competências e se converteram fragilidades em forças. Se estes casos tivessem chegado à televisão teriam certamente rebentado a escala das audiências e dado muito dinheiro a ganhar aos poucos que dividem os lucros, mas nunca teriam sido acompanhados com a dignidade, a competência e a coragem com que foram acompanhados e resgatados.

Por conhecer estes e outros casos, termino como comecei: abomino o conceito do programa SuperNanny, acho-o uma aberração total e uma fraude em toda a linha. Está a um passo de se tornar a nova casa dos horrores, insisto.