As Forças Armadas organizam o “maior desfile da democracia”, para comemorar o armistício de 1918, e as redes sociais encheram-se de piadas sobre “as armas de Tancos”. Entretanto, Presidente da República e primeiro ministro lamentavam, a propósito, os “jogos de poder” ou “jogos políticos” em volta das forças armadas. Que “jogos” são esses? A que se referem exactamente? A verdade é que uma classe política suficientemente habilidosa para ter deixado para trás a bancarrota de 2011, a prisão de um ex-primeiro-ministro por suspeita de corrupção em 2014, e as dezenas de mortos dos incêndios de 2017, parece estranhamente incapaz de sacudir ou até de deslindar o caso do material de guerra furtado em Tancos. “Pode originar uma crise”, vai dizendo Rui Rio. E isto já depois da demissão do ministro da Defesa, Azeredo Lopes, e do chefe do Estado-Maior do Exército, general Rovisco Duarte. Que se passou, que se passa? Mais: que se vai ainda passar?
Esta é uma história que nunca poderia ter sido inventada, e que não vale sequer a pena tentar contar. Um ano depois, continuamos a desconhecer quase tudo. Não sabemos o que se passou em Junho de 2017, quando constou que desaparecera material de guerra do paiol de Tancos. Não sabemos o que aconteceu em Outubro do mesmo ano, quando de repente foi anunciado que “todo o material” tinha aparecido na Chamusca (não tinha). Não sabemos, finalmente, quem sabia do que, segundo consta agora, terá sido uma encenação, combinada para recuperar o material furtado. Deixemos ao engenho de cada um estender a lista das dúvidas. Temos ou não paióis militares que funcionam como uma espécie de self-service para ladrões? Temos ou não um Estado que conspira contra si próprio, através de guerras entre polícias? Temos ou não autoridades para quem não vale a pena seguir os procedimentos regulares sempre que é possível “desenrascar” as situações? Qual a fronteira, no regime português, entre a habilidade e a trapalhada?
Como aconteceu em todos os escândalos políticos dos últimos quarenta e quatro anos, foi inevitável que alguém mencionasse o Watergate. É o caso clássico de encobrimento e obstrução da justiça, por fim resumido na célebre fórmula: “o que é que o Presidente sabia e quando é que o soube?” (“what did the President know and when did he know it?”). Ora, eis que no fim da semana passada, depois de muitas voltas pelo Governo e pelas chefias militares, a trapalhada de Tancos acabou por se fixar literalmente na pergunta de Watergate: o que sabia o Presidente da República, ou mais exactamente o pessoal da sua Casa Militar? Para o Presidente, foi “o mundo de pernas para o ar”: como é que podiam suspeitar dele, que tinha sempre exigido investigação? Mas disse mais: “se pensam que me calam, não me calam”. Chegados aqui, é de facto espantoso que não haja mesmo a tal crise prevista por Rio: quem, em Portugal, quer calar o Presidente da República, pelo menos acerca de Tancos?
Em resposta, o primeiro-ministro, sem pedir demasiado à elegância, pareceu recomendar ao Presidente que contivesse a sua “ansiedade”. O líder do PSD, Rui Rio, pelo seu lado, comentou que, “até ver”, o caso não colocava em causa o Presidente. Há expressões tremendas: “até ver” é, sem dúvida, uma delas. Que se passa? Começa a “grande geringonça”, que este ano substituiu a “pequena geringonça” de 2015, a “jogar” contra o Presidente, como elemento excluído do novo entendimento oligárquico? São estes os “jogos de poder”? Não sabemos. Mas há outra coisa que também não sabemos: é se devemos, a partir de agora, incluir tudo isto no “regular funcionamento das instituições democráticas”.
Irá o regime suportar, sem risco de eclipse de credibilidade, a sombra pegajosa que Tancos está a projectar sobre todas as instituições — polícias, forças armadas, Governo, e agora a Presidência da República? É que começa a ser obscuridade a mais.