Há um mistério na sociedade portuguesa. Morrem dezenas de pessoas em incêndios, e o governo diz que não é a protecção civil. Desaparece e reaparece material dos paióis militares e dos barcos de guerra, e o governo manda informar que não é sentinela nem polícia. Morrem mais pessoas na derrocada de uma estrada entre pedreiras, e o governo esclarece que não é direcção-geral, nem câmara municipal. Enfim, a lista podia continuar. Não parece haver má notícia capaz de obrigar um membro do governo vir a público dizer – “aconteceu isto, não devia ter acontecido, peço desculpa, etc.” A questão é esta: ao certo, o governo é responsável do quê em Portugal?

Não estamos obviamente a falar das responsabilidades, eventualmente criminais, de um director ou de um técnico. Um ministro não é um director-geral ou um comandante no terreno. Estamos a falar da responsabilidade política de quem está no topo das hierarquias, e que, no meio de muitas pequenas autoridades e respectivos agentes, corporiza, em última instância,  a responsabilidade do Estado perante os cidadãos, de modo que não se perca nos interstícios da burocracia dos inquéritos e dos processos. Sobretudo quando, como em todos estes casos, está em causa uma das funções básicas do Estado, que é a segurança dos cidadãos, é fundamental que essa responsabilidade seja clara. Acontece, porém, que o actual governo parece ser o primeiro em Portugal a propósito do qual não parece apropriado empregar a velha denominação jornalística de “responsáveis políticos” para referir ministros e secretários de Estado.

Em relação às más notícias, claro. Porque em relação às boas, o governo, indiferente à cronologia e à lógica, não deixa créditos para mais ninguém. Sabemos assim que é o responsável único de a economia ter voltado a crescer em 2013, ou de Portugal ter fechado com sucesso o programa de ajustamento em 2014, pouco importando que só tenha tomado posse em 2015. Mas de Pedrogão, de Tancos, de Borba, que ocorreram sob a sua guarda, nada sabem e nada lhes diz respeito.

Não devemos deixar esta fuga épica às responsabilidade ficar-se pelo anedotário nacional. Este é um governo de políticos que têm estado no poder quase sempre desde 1995. Já levaram o país à bancarrota e foram, durante anos, chefiados por um primeiro-ministro que, como ele próprio confessou, era pago por um empresário com contratos com o Estado. Escapar a responsabilidades, trespassar responsabilidades, diluir responsabilidades, tem sido o segredo da sua sobrevivência. Desde 2015, concentram os recursos do país na satisfação das suas clientelas, indiferentes a tudo o mais, a começar pela degradação dos serviços públicos. No bunker do seu Estado clientelar, estão à vontade. À sua frente, têm uma sociedade envelhecida, endividada, expropriada pelo fisco e limitada pela burocracia – uma sociedade sem forças para gerar as instituições, as influências e as alternativas capazes de impor ao governo o sentido dos limites e das responsabilidades. Um sintoma da situação: desesperado com eleições e sondagens, o maior partido da oposição optou por aproximar-se do governo. Chamam a isso, no PSD, “recentrar” o partido, o que só faz sentido quando percebemos que o “centro” quer dizer o Estado e as suas clientelas.

Os oligarcas, para despistar os portugueses, falam muito de “populismo”. Em Portugal, porém, a maior ameaça à democracia não vem de movimentos anti-sistema, que não existem, mas precisamente do desaparecimento da responsabilidade política, que é o caminho mais curto para o desaparecimento da limitação do poder e das garantias dos cidadãos.

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