1. Muito pouco tempo após as eleições espanholas de Dezembro de 2015 fui a Espanha. Olhei, li, perguntei muito, o costume. Vi com os meus olhos. E achei que aquilo tinha pouco conserto. Muito dificilmente se fechariam acordos partidários, quanto mais a esse “upgrading” político que é uma coligação governamental. Sim, iniciar-se-iam múltiplas consultas — públicas, privadas, secretas — de todos com todos, audiências com o Rei, debates televisivos efervescentes. Sim, o processo iria ser longo, talvez mesmo conturbado e seguramente ultra mediatizado mas dadas as espinhosas relações politicas entre os partidos espanhóis não excluí, antes sublinhei como altamente provável, a repetição do acto eleitoral. Cheguei cá e escrevi isso mesmo, aqui mesmo.

2. Se fosse lá hoje, escreveria a vermelho. Vermelho de chamas ou de perigo.

A direita, apesar de (aparentemente) favorita nas sondagens, parece ter peste: ninguém a quer por perto. Rajoy resiste e insiste, ignorando-se se hoje, nesta conjuntura, neste tempo político, “nesta” Espanha, que poderá ele fazer com a insistência e a resistência, e que serventia “nacional” virão a ter uma e outra. (Nenhuma?) E ignorando-se ainda se alguma coisa de substancial mudaria na paisagem do eleitorado do PP e da Espanha, se em vez de Mariano estivesse Beltrano na chefia dos Populares. Com Beltrano e sem Mariano teria a direita melhor sorte?

Se a pergunta é ociosa por impossibilidade de resposta, a captura do PSOE pelo Podemos é tudo menos ociosa. A esquerda democrática com a qual um Estado de Direito e uma democracia normal e saudável sempre contaram e na qual mesmo os adversários sempre confiaram em que com ela o “essencial” estaria a salvo, está em vias de entrar numa arrecadação. Capturada por aquele rapaz protegido de ditadores e alimentado pela Venezuela, que lidera um bando de péssima reputação. Será (aparentemente) ele quem irá negociar com o PSOE com as chaves políticas na mão e não, como deveria ser, o contrário. Que o mesmo é dizer que os socialistas do PSOE descerão, com as suas armas e bagagens para a arrecadação, trocando com o Podemos, que subirá para a sala.

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O PP encostado ao muro e o PSOE numa arrecadação?

3. Não sei se haveria muita gente que há dois anos apostasse na verosimilhança deste estado de coisas. Que apostasse em que, apesar da zanga das classes médias, da exaustão dos partidos tradicionais, dos altos níveis de corrupção, da crise e do “paro”, apesar dessas coisas indisfarçáveis e nefastas, a sociedade espanhola permitiria — estávamos distraídos? — a emergência de marginais exaltados no seu seio. Subvertendo o sistema político e desfigurando — ou delapidando — aquilo que tínhamos, fosse à direita, fosse à esquerda, como relativamente “seguro”, aqui ao nosso lado: territorialmente, civilizacionalmente, politicamente, socialmente, economicamente. Numa palavra, assistiremos muito provavelmente à vitória, democrática, legítima, obtida nas urnas, de uma agremiação de radicais perigosos a quem, tudo o indica, irão agora ser entregues as chaves da governação da Espanha (e, se assim for, daqui a um ano estarei a escrever… “das Espanhas” , em vez de “da Espanha”).

O inconfiável Iglésias e o seu rabo-de-cavalo, e a sua artificialíssima informalidade, e o seu estéril “patois”, e as suas incessantes encenações mediáticas, poderá, numa palavra, vir a ocupar-se, em lugar de muito destaque, com algo de parecido com o destino de um país.

Aliados eleitoralmente aos comunistas, os Podemos travestiram-se de “sociais-democratas” e lembremos apenas como historicamente a etiqueta tem feito um jeitão a leninistas e outros “istas” quando era necessário o travesti ou o disfarce, para fins mais pesados. Sabe-se bem que uma boa parte deste actual estado de coisas se deve a que o PSOE se recusa a olhar sequer para o PP (quanto mais a comporem ambos um grande bloco político que sustentasse um governo). Também se sabe que a fraquíssima liderança socialista espanhola de pouco ajuda, Pedro Sanchez tem dividido sem nunca reinar: o baronato anda mal disposto e as tropas socialistas desmobilizadas. E quanto aos amáveis Cuidadanos, continua a suspeitar-se que terão mais vontade que votos. Podem servir politicamente, mas não chegam eleitoralmente.

Aquilo que enfim, no Natal de 2015, me parecia um imbróglio político-partidário, passou, hoje, à hora a que escrevo, no verão de 2016, para um imbróglio perigoso. Com o referendo inglês bem “instalado” obviamente na paisagem política espanhola, não sendo de excluir (e não excluo) que o resultado possa de algum modo condicionar ou “intervir” no voto da Espanha.

E se pensarmos ainda que o medo que hoje ancorou nas sociedades europeias é em si mesmo um factor (real, concreto, insidioso) de condicionamento de decisões políticas e critérios eleitorais, temos de nos fazer à vida. Procurando outra.

4. Tudo já se disse, escreveu, alertou, avisou, anunciou, previu, dentro e fora de portas, sobre o referendo inglês desta semana. Pertenço ao clube ultra minoritário — terá ainda algum sócio? — dos que se tivessem que apostar hoje, dia 20 Junho, pelo Brexit, poriam uma cruzinha na casa do “sim à UE” (e cá estarei para pedir desculpa ao caríssimo leitor caso os ingleses mandem a “Europa” dar uma volta ao bilhar grande). A verdade é que não mudei de ideias desde que aqui também escrevi (em Maio, salvo erro) que me inclinava pouco para o Brexit, embora me aperceba do risco temerário de insistir hoje em tais afirmações. Seja como for, e foi isso que sempre norteou o meu raciocínio, seja “in” ou seja “out”, o mal está feito. Pior: se as coisas já estavam tortas e titubeantes na UE, se o mal-estar é indisfarçável e nenhum dos grandes problemas que afligem hoje a Europa está sequer a ser encaminhado para uma solução, o “mal” irá para pior. Pior que quê? perguntar-me-ão. Há sempre pior em política (como por exemplo a Grã Bretanha sair da União Europeia).

Mas pode ser que na próxima quinta-feira o susto destes meses se transfigure em ímpeto e inspiração (talvez já só divina) e arregace as mangas de uns e espevite as mentes de outros.

5. Apesar do medo e apesar do susto (não, não são a mesma coisa), da incerteza e do perigo, da falta de norte e da ausência de Deus, vivemos dias admiráveis.