Há várias classificações possíveis em relação às diferentes dimensões da atividade política. Optamos, neste artigo, por dividi-la em dois eixos. As noções que se seguem são demasiado esquemáticas, e careciam de maior concretização e desenvolvimento. Contudo, para este propósito são funcionais e reproduzem realidades existentes e que creio serem compreensíveis. Além disso, na minha visão, reproduzem a realidade portuguesa.

As duas dimensões da atividade política que aqui propomos são as que a distinguem entre a política material ou substantativa e a política formal ou procedimental.

A primeira representa aquilo que pela natureza das coisas a política se propõe fazer, e de que maioritariamente se deve ocupar: apresentar soluções para determinados problemas de uma região ou comunidade, desenvolvendo um projeto prolongado no tempo e que possa alcançar os fins traçados por quem o leva a cabo. É aqui, neste campo, que surgem as divergências ideológicas e as diferentes maneiras propostas de abordar, contornar e resolver determinado problema. Discutimos e divergimos sobre qual a melhor estratégia para o Trabalho ou para a Educação, para a Segurança Social ou para a Justiça, para melhorar o Serviço Nacional de Saúde ou para fomentar o desenvolvimento económico e a consequente melhoria das condições de vida dos portugueses. É não só mas sobretudo aqui que assistimos aos maiores desencontros ideológicos; uns de nós acreditam num Estado maior e com mais presença na vida dos cidadãos, uns julgam que os homens e as mulheres são mais iguais e outros mais desiguais, há os que desejam um mercado mais ou menos regulado e uma política educativa desta ou daquela natureza. Com maior ou menor entusiasmo, a discussão é feita sobre temas concretos, que carecem de uma ação depois da discussão.

Podemos discordar diametralmente nas soluções e até na configuração dos problemas. Contudo, quando o fazemos, quando, por exemplo, compomos alegre e esperançosamente um programa eleitoral para uma eleição ou defendemos entusiástica e confiantemente determinado modo de ver o mundo em detrimento de outro, estamos e continuamos nessa primeira dimensão – e devemos está-lo orgulhosamente. Estamos a fazer política, material e substantivamente falando. Propomos soluções para o andamento do município, da região ou do país e para a consequente melhoria das condições de vida de quem lá habita. Isto é bom, é nobre e é absolutamente necessário, independentemente de onde diverjamos. E nós sabemo-lo.

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Nomeámos a outra dimensão de política formal ou procedimental. Utilizamos, aqui, um recurso da linguagem jurídica: forma ou procedimento porque desta vez não estamos em contacto com o sumo ou o core da política, nem perante qualquer oposição de sistemas de ideias distintos que se confrontam.

Neste caso, somente existe um barulhento aparato exterior à discussão das ideias, mais ou menos caótico, com maior ou menor exposição mediática dependendo dos momentos. É neste aparato, em que as oleadas máquinas de marketing e propaganda dos partidos trabalham e se especializam, é neste aparato, dizia, que se jogam as cartas que estão para lá da porta dos fundos da política. Tramam-se as conspirações e contam-se as espingardas, escolhe-se este indivíduo ao invés daquele para determinado lugar, colocam-se as armadilhas à força política adversária e pesam-se as consequências do escândalo em que determinado político foi apanhado, e as repercussões que daí resultarão. É o aparato do amiguismo e do esquema para atingir o amigo ou camarada, são os truques para servir a vasta clientela que aguarda pela prometida retribuição dos favores, é o aparato das exonerações, das demissões ou nomeações de ministros ou secretários de Estado e sobretudo das respetivas reações por parte de comentadores, analistas e da restante bolha dos media. Numa palavra, é tudo aquilo que temos visto nos últimos meses, na política portuguesa.

Para termos uma posição honesta devemos dizer que esta dimensão faz naturalmente parte do mundo, e em concreto do mundo político. Um puritanismo ou moralismo utópicos sugeririam que nada disto nele deveria ter lugar, em qualquer circunstância. No plano do dever ser, não me pronuncio. Mas o certo é que na realidade dos factos tem, sim, lugar, e dentro de certos limites (em Portugal, já há muito ultrapassados) esta dimensão pode conviver saudavelmente com a prática política mais elevada e urgente. De uma forma ou de outra, a parte substantiva da política, a discussão e o desenvolvimento de ideias e projetos e a preparação para o confronto de visões distintas deve, sempre, ocupar a maior parte do tempo de quem a faz. E também de quem a pensa, vê ou comenta.

E é precisamente isto que não tem acontecido. Nos últimos meses, em Portugal, assistimos a uma inversão total do sistema de prioridades na discussão pública. Com maior intensidade nas últimas semanas, a única dimensão política que existe é a formal. Os escândalos, as demissões, as pressões, as tensões entre órgãos distintos de soberania, o que o assessor fez ou deixou de fazer, a remodelação que o PM deve ou não levar a cabo, a maneira como nas entrelinhas diferentes intérpretes entendem diferentes mensagens dissimuladamente disfarçadas e o posicionamento mais ou menos inteligente dos líderes da oposição perante as crises. É isto que nos ocupa, somente. Quem tem a possibilidade de contactar diretamente com a política, como interveniente direto ou espetador atento, reconhece esta realidade diária. Os últimos meses têm sido um inverno político, duro, longo e penoso, com quase total ausência de discussão dos problemas do país. A necessária reforma judicial, as eternas dificuldades do SNS, a sustentabilidade da Segurança Social e o desenvolvimento económico sofrível são quatro exemplos de temas fundamentais que nos habituámos a discutir, ou pelo menos a reconhecer. Questiono: há quantos meses é que estes assuntos estão quase totalmente afastados da discussão pública?

Os únicos dois problemas do país com espaço mediático em 2023 têm sido a crise de Habitação – a propósito das medidas apresentadas pelo Governo para a tentar combater – e os lancinantes solavancos da gestão da TAP, com o seu destino caótico e imprevisível. Contudo, em relação a este último caso, é de novo somente o aparato político-jurídico em torno da empresa que alcança voz pública: os desentendimentos entre a tutela política e a liderança, as comissões de inquérito e as prestações dos envolvidos, as indeminizações que se pagaram e as que talvez tenham de se pagar e no fim do dia um processo que, sem prejuízo de complexo, exigia maior seriedade, sobriedade e compenetração na sua gestão. Tudo o mais que não isto sumiu do ringue.

Parecem ir distantes os tempos em que havia espaço e oportunidade para discordarmos. Mesmo depois de eventuais desentendimentos, creio que no fim do dia gozávamos uma satisfação interna – ainda que breve – por termos colocado o nosso sistema de ideias em confronto com outro sistema de ideias, e por consequência ao serviço da causa comum. Agora, só resta espaço para concordarmos que tudo isto é penoso, insustentável e mau.