Há dias em que os deputados são da Nação. Há dias em que são deputados de outra coisa que lhes der mais jeito. Há dias em que acham que as funções para que foram eleitos não são todas para cumprir, nomeadamente o papel de fiscalização da Assembleia da República. E até há dias em que declaradamente o assumem. O papel do Parlamento não se esgota na fiscalização, mas é deste que vou agora falar.

A audição de Manuel Pinho na Assembleia da República devia ser editada em três capítulos e passar numa televisão generalista, em horário nobre, para que a utilidade do Parlamento fosse questionada de tal forma que os partidos não tivessem alternativa a rever o sistema político eleitoral e a sua postura. Andamos todos muito preocupados com a falta de oposição, mas temos de olhar atentamente para a separação e interdependência de poderes.

Da pouca vergonha de Pinho já foi tudo dito em notícias e opiniões no Observador – e em toda a comunicação social, sem faltar o ex-primeiro-ministro Sócrates a mostrar bem a conta em que tem o Parlamento: trai cidadãos e o escrutínio é uma deslealdade parlamentar. Saber de experiência feito, experimentou a “lealdade” e a “deslealdade”. Hoje está acusado de três crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, 16 de branqueamento de capitais, 9 de falsificação de documentos e três de fraude fiscal qualificada.

Contra o protagonista da audição parlamentar, Manuel Pinho, há prova indiciária de ter recebido transferências mensais de cerca de 15 mil euros do Grupo Espírito Santo, enquanto foi ministro de Economia de José Sócrates, para beneficiar a EDP, da qual o Banco Espírito Santo era acionista, assim como o próprio GES.

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Já do teatro do Parlamento ainda podemos falar mais um bocadinho. Pinho aceitou ser questionado pelos deputados, mas só falaria sobre política energética. Os deputados aceitaram e cada um fez o seu papel: ele falou do que quis, quase todos os deputados fizeram perguntas incómodas que sabiam que não iam ter resposta. Todos jogaram um jogo que conhecem bem. E nós ficamos a pensar que ficou tudo na mesma. Mas se voltarmos a pensar no parágrafo anterior e lermos este e o que se segue, que é uma descrição de factos, talvez o tudo na mesma se mostre insuportavelmente grave.

O PS subiu a parada, sem ofender as regras do jogo, mas levando-as ao limite para quem assistiu de fora: pela voz do deputado Luís Testa usou o Parlamento para fazer uma das maiores odes ao “rouba mas faz” num palco soberano da Política Portuguesa.

Testa abriu a dizer que a posição de Pinho era defensável. O PS não lhe colocaria qualquer questão e aguardaria o momento oportuno para que perguntas do mesmo género das dos deputados indignados (por comodidade do termo vou chamar assim a quem confrontou Pinho com questões que não de política energética) lhe fossem formuladas. Mas o PSD enganou-se no requerimento que fez. A comunicação social veiculou notícias que davam Pinho como envolvido, enquanto ministro, numa coligação de interesses entre governo e empresas – e o PSD aproveitou-as para “alargar o espírito e a letra do requerimento” que trouxe ali Pinho.

Ora, os deputados têm a legitimidade e o dever de cumprir o objeto do requerimento, que era sobre política energética. O PS não quer confundir o papel da comissão de inquérito e o papel mais abstrato da Comissão de Economia, que deve ouvir o Manuel Pinho e outras pessoas sobre política energética, claro está. E agora vamos ao que (lhes) interessa: Sócrates e Pinho deram ou não um grande impulso de transformação energética no país no tempo deles? O objetivo final do mixenergético não era que o país não ficasse refém das importações de materiais fósseis e reduzisse a dependência de energia produzida em barragens?

O deputado do PS ainda salientou que houve um impulso dado pelo governo Sócrates e uma transformação profunda na sociedade. Perguntou a Manuel Pinho se naquela altura era possível adivinhar que a transformação digital viria a ser tão profunda. Aguardou a resposta e, como depois desta ainda tinha tempo, perguntou: E o mix diminui a fatura energética? Ainda sobra tempo e Testa quer aprofundar a questão: quando é dado o impulso para o mixenergético isso tinha no fim da linha a diminuição da fatura energética do consumidor?

Isto é o que “à política o que é da política” quer dizer.

No final, o deputado ainda conseguiu produzir umas declarações inadmissíveis ao Expresso, dizendo que provavelmente não, mas que podia, no exercício do seu poder como deputado da Nação, não fiscalizar todos os ex-ministros da mesma maneira, atendendo ao partido ou ao governo a que pertenciam. É que o homem é ele e as suas circunstâncias, filosofou.

Os deputados não podem perder o mandato por qualquer coisa, nem respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitam no exercício das suas funções, mas quando um deputado produz declarações a dizer frontalmente que pode acontecer equacionar violar a lei porque na mente dele a primeira obediência como deputado é ao partido e depois à Nação, isto tem de ter uma consequência.

Carlos César, com quem Testa certamente orquestrou a posição na audição, nessa mesma noite achou a postura de Pinho infeliz e arrogante. Sobre este entendimento de fiscalização pela Assembleia da República não se pronunciou. Mas devia, porque preside ao PS e ao seu grupo parlamentar e tem obrigação de garantir a confiança nas instituições. E não são os populistas que as implodem.

Dir-me-ão que todos os partidos fazem isso: uns deputados dizem, outros não. É verdade. O que não nos faltam são exemplos de comissões em que os deputados avançam determinadamente, mas só até determinado ponto. Basta lembrar a do BES. De comissões em que se põem figuras tutelares à cabeça para criar consenso. Dos debates quinzenais ou das perguntas ao governo feitas nos gabinetes ministeriais (em todos os governos); das perguntas do BE que começam com um “sr. primeiro ministro isto é inadmissível, mas ali a direita fez pior e portanto vamos suavizar”.

Nestes dias marcados pelos incêndios na Grécia, que trazem à memória os de Portugal em 2017, é relevante lembrar a primeira vez que o governo foi ao parlamento depois de Pedrogão e pelo PS falou Alberto Martins, quase de saída e respeitado por todos, para amenizar a discussão que derivou em pouco tempo para o pinheiro manso, ou bravo, não me lembro, com a aquiescência de todos os partidos. Os mortos quase não existiram.

As inviabilizações constantes das audições de ministros, ex-governantes, ex-responsáveis, ou as listas intermináveis de pessoas a ouvir; da atuação em cartel no caso das remunerações dos deputados que impediram o seu próprio escrutínio; o PCP que nunca quer ouvir quem ponha em causa o comportamento do Estado; e ainda agora ouvimos falar de um veto de gaveta do PS à audição do Chefe do Estado-Maior do Exército por causa das armas desaparecidas de Tancos. Casos de sempre e alguns casos mais recentes.

Ver esta audição é como bater com força contra uma parede. As gravações já não permitem esconder o que realmente se passa. Agora, parece-me óbvio que, para além da introdução dos círculos uninominais e do círculo de compensação nacional, de tudo o que aproxime e facilite o escrutínio, atraia o voto e obrigue a escolhas mais competentes e diversificadas, a exclusividade das candidaturas partidárias ao parlamento tem de acabar, os mandatos de deputado têm de ser limitados e o papel e funcionamento do Parlamento atualizado.

Hoje, citando parte da intervenção de Testa, estamos mais informados sobre as nossas circunstâncias. Temos também mais obrigação de as tentar mudar.