Duas notícias no Observador chamaram-me a atenção nesta última semana, não porque sejam uma novidade, mas porque espelham uma tendência crescente que está a desenhar um retrocesso. A primeira, “Os homens de Montenegro” elenca, como o próprio título indica,  uma lista de homens candidatos a lugares cimeiros no PSD sob da liderança de Luís Montenegro. A dada altura, o artigo usa mesmo o subtítulo “Mulheres procuram-se”; a segunda, “Como os militantes do PSD começam a tomar conta das empresas municipais de Lisboa”, fala das escolhas de Carlos Moedas para as administrações das empresas municipais da Capital não tendo, até agora, nenhuma mulher sido escolhida para presidir nenhuma delas. As notícias sobre o PSD são, de há uns anos a esta parte e sobretudo desde o início desta leva de discussões da liderança, quase exclusivamente sobre homens – textos e fotografias. Não é inédito. Novidade é estarmos a falar de dois dos protagonistas que é suposto conduzirem o PSD ao futuro, ou seja, emancipá-lo da última fase no poder com o governo de Pedro Passos Coelho e a troika, erguê-lo da fase de declínio com Rui Rio, e preparar o Partido para governar a todos os níveis nos 2020s. A não ser que se acredite que em Política vigora a lei do eterno retorno, é difícil ver como um partido pretende chegar ao poder novamente alienando frontalmente, grosso modo, 50% dos eleitores. Já nas eleições legislativas deste ano, PS, BE e PAN tiveram um apoio desproporcionalmente alto entre as mulheres que votaram, ao contrário do PSD, IL, CDU e Chega, segundo uma análise das bases sociais do voto nas legislativas de 2022 feita pelo Pedro Magalhães. 58% das mulheres que votaram no continente votaram na esquerda ou no centro-esquerda e a feminização do voto no PS, o outro grande partido, é notória (os gráficos no link com o cruzamento das variáveis também são elucidativos).

Afunilar para uma base eleitoral masculina não chegará.

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Mais, vamos assumir que toda a coisa pública é gerida pelos partidos políticos. As elites políticas tendem a ser mais conservadoras que o resto da sociedade, mas, se o PSD quer continuar a ser um grande partido – o mais português de Portugal – não se pode dar ao luxo de cristalizar. Tem obrigação de dar o exemplo, começando pelo que está ao seu imediato alcance fazer. Não bastam campanhas de choque contra a violência doméstica, o crime mais cometido em Portugal, esmagadoramente contra mulheres, no Dia Internacional da Mulher. Diz-me o que fazes com o poder que tens: quantas mulheres empoderaram? Quantas mulheres ascenderam a lugares de poder e assim demonstram que as mulheres não são naturalmente inferiores, mais fracas, menos capazes?

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Recentemente, na campanha eleitoral de apoio a um amigo, quando referi a falta de mulheres, um dos membros da organização respondeu-me que as mulheres agora são perigosas, querem lugares. Já os homens não, não querem lugares, nem dinheiro, é tudo altruísmo e pro bono (se o Observador permitisse que o espírito do José Milhazes baixasse sobre mim, seria aqui)! O autor da resposta teria 40 – não 100 — anos. É uma visão tenebrosa do futuro.

A quantas mulheres foram dadas as mesmas oportunidades que aos homens para uma carreira ascendente, a experiência, para construirmos um currículo que nos coloque num patamar salarial e de reforma semelhante, nos afaste de uma vida mais pobre e de um fim de vida com menos meios e mais dependência num país em que a pobreza e os baixos rendimentos são predominantemente femininos, em que as mulheres têm mais dificuldades em arranjar trabalho e chegam a ganhar 78% do salário dos homens em empregos com as mesmas qualificações (e só estamos a falar de campos nivelados), segundo a OCDE? Em 2021, 22,4%?

da população portuguesa vivia na pobreza ou exclusão social mesmo após transferências sociais. 23,5% das mulheres residentes no país estavam nesta situação, 21,1% dos homens. Em 2020, 45,3% das mulheres em Portugal eram pobres antes de qualquer transferência social, descendo para 23,6% após as transferências relativas a pensões e para 19,2% após todas as transferências sociais. O crescimento da pobreza entre os trabalhadores atingiu mais as mulheres, mais 40 mil, que os homens, mais 29 mil. Pode que o problema dos quadros do PSD não seja exatamente este, mas a questão é o que faz o PSD para mudar este cenário.

O tempo não é solução para tudo. Mais 30 anos parece-vos razoável?

Não chega dizer quer que já se teve uma mulher a presidente do partido.

E o PS, que tem o primeiro governo paritário do País ao nível ministerial, pode, com o grande poder que a maioria absoluta lhe dá, fazer muito mais, se quiser mudar o status quo. Quer? Algumas sugestões que quem anda neste mercado de trabalho sabe que podem ter um impacto significativo:

  1. Abrir canais de receção de denúncias de assédio moral e sexual e discriminação em todos os organismos públicos ou entidades que dependem maioritariamente de fundos públicos semelhante ao que foi criado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Não se preocupem com a caça às bruxas, preocupem-se com os milhões de mulheres e gerações sucessivas que há séculos aturarmos isto;
  2. Num país altamente dependente do Estado, repensar imediatamente as regras de acesso a fundos públicos por entidades que não tenham nos seus órgãos dirigentes mulheres em cargos executivos. Introduzir, e.g., este fator de ponderação com peso suficiente para ser levado a sério per se e não apenas como fator de desempate, nem estar envolto em cláusulas gerais de cumprimento das regras de igualdade. A quota obrigatória legislada pela UE para vigorar em 2026 não obsta a que o Estado use já estes critérios, nem que se vá adiantando nas suas próprias empresas – o que tem feito deficientemente! –, nem que a torne transversal.
  3. Criar um código de ética rigoroso que estipule que relações íntimas no local de trabalho, que é natural que aconteçam, obrigam à saída de um dos envolvidos, preferencialmente o que ocupa a posição hierárquica mais alta, para evitar abusos e poderes paralelos dentro das organizações;
  4. Não só dependente do PS, votar uma lei da paridade para todo o Estado, e para todos os organismos maioritariamente financiados por fundos públicos, que estabeleça 50% de mulheres e homens e alternância obrigatória. Os lugares não podem injustificadamente ser ocupados por familiares, inclusive nos órgãos de entidades que tenham entre si relações semelhantes às dos grupos empresariais.
  5. As quotas atuais trouxeram muitas mulheres à política, mas não podemos assentar confortavelmente na base dos dois homens, uma mulher. A partir de determinada altura, não avançar é retroceder. Seguramente seremos capazes de encontrar meios para compatibilizar vida familiar e profissional que sirvam mulheres e homens.

Sugiro duas séries para que as mulheres ajam sem o síndrome de impostor e os homens sem a presunção do Hemingway de que é que moral o que nos faz sentir bem depois de o fazermos e imoral o que nos faz sentir mal: a colossal Intimidad e a Anatomy of a Scandal.

Twitter: @sandra_clemente