Se eu agir incorretamente, apesar de conhecer tudo o que está escrito em todos os livros, serei mais ignorante do que aquele que, agindo corretamente, desconhece esses livros, diz Alfarabi, pensador árabe do século X, fundador do pensamento político islâmico e um dos grandes responsáveis pelo conhecimento medieval-latino da filosofia grega (especialmente Platão e Aristóteles).

Nem tudo se aprende nos livros. A aplicação prática do conhecimento teórico é a grande prova que distingue um bom governo de um mau governo, diria também Tocqueville, ao registar a presença dos valores originários da experiência dos povos na sua boa condução política.

O que se passa hoje, não teria surpreendido ambos os pensadores. A naturalidade absoluta da indiferença cívica, o espírito de completa exterioridade, ‘embrenhado em ácidos’, que domina a política portuguesa mostra que não são as leis nem as instituições, mas os hábitos, os sentimentos, os costumes, as crenças que realmente podem diagnosticar a saúde ou a doença das democracias.

Respostas mecânicas, orgânicas ou institucionais, não só esvaziam de significado as leis e as instituições que se representam como denotam a ideia de que se agiu deficientemente. «Não há nada mais triste – acentua Ortega y Gasset – do que um escritor, um professor, um político sem talento, sem finura sensitiva, sem prócere carácter: mordidos por um íntimo fracasso, irradiam perfeição e felicidade». Dramaticamente, previsível.

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Quando a moeda é defraudada, é a própria pessoa defraudadora, independentemente do que possa ser a lei. O nervo saudável da democracia consiste na nivelação de privilégios, de castas, das desigualdades legais, não no reforço das origens inigualitárias. Converter critérios em opiniões, diferenças em equivalências, esbater relevâncias éticas, filosóficas ou mesmo científicas é uma prática igualitarista que reforça as desigualdades originárias. A obsessão legal do poder político é uma purulenta secreção deste igualitarismo nivelador, o grande mito que ressuscita atualmente o fantasma que sempre ameaçou as democracias, a tirania. Há comportamentos cuja redundância crescente arruína a consistência interna das sociedades, suscitando-lhes o mais fervoroso rancor.

Todos nós preferiremos a democracia à tirania – mesmo sendo uma má democracia. Isto, justamente, em nome da igualdade, lembra-no-lo ainda Tocqueville. Nem haverá muitas alternativas, além da «tirania dos Césares» e da própria democracia, notava ele. Vaticinaria a sua difusão e irrecusabilidade universais, não deixando, contudo, de apontar os perigos que a democracia forçosamente leva consigo. É que se não há democracia sem liberdade, também não há liberdade sem igualdade; e aqui volta a abrir-se – e está a abrir-se! – a fenda através da qual a democracia pode deslizar para a tirania.

Explica-se assim. À medida que a democracia vai avançando, as relações entre os indivíduos podem tornar-se mais coesas ou mais frágeis, tudo dependendo dos respectivos “estilos de vida” (preenchidos por sentimentos, costumes, hábitos, crenças). Se eles se afastarem a ponto de serem estranhos «ao destino uns dos outros», não apenas diluem o poder das suas convicções, como fragilizam o conjunto da sociedade, gerando-se consequências políticas graves. A deriva do individualismo para o egoísmo é então rapidíssima. Caindo nesta objectivação total, cada um de nós, ocupado com a sua vida, com os seus interesses, nem repara que vai tendo um destino cada vez mais imposto, menos protagonizado por si próprio, perdendo quer a igualdade, quer a liberdade.

Permitimos que se instalasse uma «espécie de opressão», «um terror mole e ocioso que desanima e fragiliza o coração», cuja perícia é desencarregar-nos da tarefa de pensar e de zelar pela nossa sorte. Escreve Tocqueville: «Não quebra as vontades, mas amolece-as, verga-as e dirige-as; não destrói, impede de nascer, não tiraniza, tolhe, comprime, debilita, extingue, atordoa, e reduz enfim cada nação a não ser mais do que um rebanho de animais tímidos e industriosos, cujo pastor é o governo».

O caminho para a democracia pode assim ser interrompido por derivas antidemocráticas, dando lugar a um despotismo de tipo democrático; desta vez «não violento», «brando» e «protector», mas igualmente «absoluto», «minucioso», «regulador». Presentemente é a linguagem de “crise” a voz desse sentimento generalizado e profundo. E a democracia parece suspensa à beira de uma tarefa impossível, retomar o caminho perdido.

Qualquer hipótese de solução terá forçosamente de revitalizar a ideia de “sociedade civil”, sem a qual é impossível falar de “comunidade política”. A melhor descrição que conheço é feita por Egídio Romano, em 1279. É ‘através’ da sociedade, não apenas ‘na’ sociedade, constituindo cidades e Estados, que os homens podem conservar a vida, viver pacificamente e responder naturalmente aos inimigos.

O furor legal do direito político é funesto para a democracia. Uma democracia exasperada e fora de si retira iniciativa, cultiva consensos infrutíferos e desagua num individualismo conformista – um tempo morto na democracia.

Ou ela ressurge «nos nossos corações», lembrando Ortega, ou lamentaremos a sua morte. Como perda evitável. Pensemo-la como a vida; saber que vamos morrer ajuda-nos a libertar o terreno da existência e não a hipotecá-lo. Vivemos para a vida e não para a morte.

Também a democracia precisa de viver para a vida. O contrário é prolongar as aparências e mascarar a realidade. É como realizar boas acções apenas para ser visto, exemplo do governante «perigoso», «ladrão insolente», «presunçoso» e «fingidor», na classificação de Tomás de Aquino, talvez o primeiro liberal (Whig). Dizer a verdade, não confiar unicamente no seu juízo, aconselhar-se, não esquecendo que muitos podem saber mais do que um só, ponderar longamente e agir prontamente, são conselhos dados por ele aos governantes da sua época (meados do século XIII). Desmembrar a democracia de uma ordem “espiritual” equivale a transformar a política num estado permanente de enfermidade que ataca todo o corpo cívico de qualquer sociedade.