“Tolos, impostores e incendiários” é o título de um belo livro, tão divertido quanto rigoroso, escrito pelo falecido Roger Scruton em torno dos devaneios filosóficos da “nova esquerda”. E é curioso que, por ocasião da morte do Tenente Coronel Marcelino da Mata, os seus representantes locais, sempre ciosos da sua omnipresença no espaço público português, tenham feito desfilar a dita tríade por televisões e demais imprensa, com as costumeiras pregações destinadas a esclarecer o povo sobre o que, na circunstância, deve sentir e pensar.

Como Marcelino da Mata era negro e oriundo da Guiné, vieram primeiro os tolos, encarregados de explicar às crianças, pela enésima vez, as subtilezas teóricas do “racismo sistémico” de que todos padecemos. Com diligência professoral, voltam a esclarecer que o racismo não é um comportamento ou uma atitude, mas um sistema. Os brancos são estruturalmente racistas e privilegiados, sejam-no de facto ou não. Os negros nunca são racistas, mesmo que o sejam. No passado, as políticas de segregação racial, como aconteciam na África do Sul e nos Estados Unidos, eram racistas. Mas as políticas ultramarinas portuguesas de integração, contrárias àquelas, também o eram. Basta terem sido ultramarinas.

Para legitimar o absurdo, subtis académicos desdobram-se em novos termos – “racismo cordial”, por exemplo – destinados a formar a realidade que confirma a teoria: uma teoria animada pelo domínio sobre o léxico, desenhada com o exclusivo propósito de chamar “racistas” a pessoas, políticas e doutrinas que o não eram. É claro, tudo termina em conceitos contraditórios que têm o alcance teórico de um círculo quadrado. Mas a lógica, escusado será dizer, é coisa que desempenha aqui papel menor. A inconsistência do conceito de “racismo sistémico” com a caracterização do racismo como questão moral, ligado a acções e atitudes concretas, não parece, nos dias que correm, desencorajar ninguém.

Depois dos tolos, vieram os impostores. Afinal, é inevitável explicar ao povo que nada há de incongruente em que, num Império habitualmente apodado de “fascista” e “racista”, as maiores condecorações coubessem a um militar negro nascido na Guiné. Na impossibilidade de ser uma vítima da propaganda do regime, só pode ser um criminoso de guerra (“inquestionavelmente”, mesmo que sem qualquer prova ou processo). Que, após o 25 de Abril, Marcelino da Mata tenha sido espancado e torturado nos RALIS pelos mesmos barbudos revolucionários que se entretinham a mostrar a “Revolução em Curso” à nata da intelectualidade europeia, como Sartre, é coisa despicienda. É certo que não se devem fazer juízos sumários sobre o carácter de todos os jovens que então militavam em grupos fanáticos como o MRPP, grupos que sanearam, ameaçaram, sequestraram, espancaram e torturaram durante o “Verão Quente” (deixemos os juízos sumários ficarem com estes grupos). Mas talvez seja avisado ponderar o que isso nos diz sobre um historiador que, militando no MRPP à época, desconsidera tais factos como irrelevantes ou indignos de atenção.

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De resto, impõe-se martelar televisivamente o mantra de que Marcelino da Mata foi um “traidor ao seu povo”. As pessoas normais sabem que não foi assim: que Guiné, Angola e Moçambique eram Portugal; que Marcelino da Mata nasceu e morreu português, no que era então um Império imerso na tragédia da história, e que lutou pelo povo a que pertencia e em que acreditava; sabe-se também –  sem que isso tenha de pôr em causa o valor que os actuais habitantes de Angola, Guiné e Moçambique atribuem à sua independência – que a guerrilha anticolonial operava sobretudo a partir de territórios contíguos, contando com o apoio de potências estrangeiras hostis e muito pouco com o apoio das populações; e que foram os tais revolucionários barbudos, com o seu lema de “nem mais um soldado para as colónias”, que instigaram depois a vergonhosa debandada geral que votou ao fuzilamento sumário – como traidores ao povo – muitos militares portugueses africanos. Que, confortavelmente sentado num estúdio televisivo, um historiador repita os termos da acusação que conduziu a tal desfecho diz tudo sobre os resultados de se misturar ciência histórica e activismo militante.

Mas, como dizia o divino Marquês, encore un effort… Como a sensatez popular costuma dar aos libelos de cátedra o devido desconto, surgem agora os incendiários. Estes focam-se, claro, em provocar a qualquer preço. Trata-se de um velho método para arregimentar minorias fanáticas. Em rebanho, já se sabe, reforça-se a cegueira e a ousadia. E as “guerras culturais” obtêm o impacto que o número de militantes não permite. A insólita ideia de demolir o Padrão dos Descobrimentos será disto um epifenómeno. Mas é um começo. Um deputado socialista, que já teve responsabilidades governativas, diz agora que o 25 de Abril deveria ter produzido um “corte epistemológico” (não descortino a razão de ser “epistemológico”, mas soa bem e adiante) e que no golpe de Estado de 1974 deveria ter havido sangue. Escutando estas atoardas, as pessoas normais e sensatas – as pessoas que justamente apreciam o facto de no dia 25 de Abril não o ter havido (apesar do manicómio em autogestão, da irresponsável bebedeira colectiva e do sangue que vieram a seguir) – começam a pensar se, de facto, não teria sido melhor que assim fosse. É quanto baste para os incendiários verem confirmado o seu ponto e augurarem o mundo com que sonham.

Curiosamente, há um romance escrito sob pseudónimo – Alvorada Desfeita – que, na linha da história alternativa, ficciona um 25 de Abril com muito sangue. Nessa história, o 25 de Abril falha devido à intervenção de um jovem recém-nomeado Ministro da Defesa, Ricardo Valera, às ordens de quem era dizimada a coluna rebelde de Salgueiro Maia. Pelo meio, no fogo cruzado, tombava também, no Terreiro do Paço, a estátua equestre de Dom José I, desenhada por Machado de Castro. Talvez esta não tenha já a dimensão simbólica do Padrão dos Descobrimentos; mas sempre é um símbolo do despotismo monárquico setecentista que, em coerência, os nossos incendiários não se importariam de ver pelo chão. Mesmo que não tivesse sido melhor, faz pensar. Parece que, de quando em quando, é preciso lembrar aos arautos do radicalismo de esquerda que, como diz o povo, quem semeia ventos colhe tempestades. Simbólicas, claro.