O título do presente artigo está incompleto. Para o completar, seriam precisas aquelas formulações barrocas que ocupam várias linhas e geram sorrisos em tempos atuais, mais dados a sínteses apressadas e análises deficientes. Um título completo teria de ser mais ou menos o seguinte: Como acabar com a formação de professores, fingindo que se resolvem os problemas e convencendo os incautos de que serão beneficiados com isso, ou como as misérias da governação confundem bastas vezes as artes do governo e da propaganda.

Passo a explicar o que quero dizer. Todos os professores no ativo sabem que a formação docente teve, em Portugal, uma época áurea, que muitos, por ainda terem passado por ela, recordam com saudade. Nessa época, antes do processo de Bolonha e do encurtamento das licenciaturas para três anos, os candidatos a professores saíam das instituições de ensino superior após cursos que tinham o tempo adequado para lhes assegurar uma formação mais sólida e completa. Estavam prontos para assumir responsabilidades como docentes e o estágio assegurava-lhes isso. Para muitos, era a primeira vez que trabalhavam. As Escolas estabeleciam contratos de trabalho com os chamados «professores estagiários» e tais contratos proporcionavam estágios remunerados. Assegurando a relação entre escolas e ensino superior, os Orientadores de Estágio tinham uma função valorizada. Tal refletia-se em reduções importantes no seu horário letivo, o que permitia aos estagiários, após formação pedagógica e integrados nas Escolas com duas turmas a cargo, serem acompanhados com tempo e dedicação.

Ora, os novos tempos e circunstâncias, as transformações no ensino superior, a crise financeira e tudo o mais levou a que as coisas mudassem. As mudanças foram consagradas há quase uma década pelo Decreto-Lei nº 79/2014. Conservava-se então, definitivamente, uma medida já tomada no primeiro Governo de José Sócrates e da sua Ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues: o fim dos estágios remunerados. Esta era uma decisão impopular, mas realista, que reconhecia o óbvio. A redução da formação científica nos Cursos de Licenciatura implicava agora complementar a formação científica e pedagógica em Cursos de Segundo Ciclo que, após a Licenciatura, integrassem o estágio. Assim, transformou-se a formação de professores em Mestrados em Ensino. Fez-se do estágio uma prática pedagógica supervisionada na qual os estudantes, uma vez estagiários, não eram ainda professores, embora assumissem atividades letivas nas turmas dos orientadores, sempre com a presença destes e sob sua supervisão. Ou seja, implementou-se um sistema de formação cujo paradigma era novo. E este foi dando passos e consolidou-se à medida que as instituições de ensino superior se lhe adaptavam, estabelecendo redes de escolas cooperantes que colaboravam na formação que ministravam.

É claro, todo o processo se estabilizou sem fazer esquecer os tempos áureos da formação de professores. Os Orientadores de Estágio, que perderam as reduções da componente letiva do seu horário e que colaboravam no novo modelo de forma quase benemérita, lembravam sempre a falta de tempo para acompanhar os estagiários. Alusões a problemas desta natureza eram mais do que justas e, detetadas e frequentemente assinaladas, poderiam (e deveriam) ter dado origem às correções imprescindíveis. No entanto, para frustração e preocupação de muitos, tais alusões depararam-se amiúde com a indiferença governativa face à necessidade de aperfeiçoar o modelo e resolver, dentro dele, problemas concretos. Por outro lado, mesmo sem terem disso experiência, como é compreensível, os jovens estagiários olhavam com nostalgia para trás, para os «bons tempos» em que os estágios eram remunerados.

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Foi este olhar nostálgico, vago mas difuso, que, em dias mais recentes, o Governo resolveu começar a excitar, propagandeando vagamente que iria «mexer na formação de professores». Desde há mais de um ano, corria nos corredores, para gáudio dos estagiários futuros, que a remuneração seria reintroduzida. Tudo isso, como de costume, sem que nada de concreto se visse ou anunciasse. Haveria um reforço do orçamento das instituições de ensino superior permitindo isenções ou bolsas de apoio aos estudantes que frequentassem os Mestrados em Ensino e neles fizessem estágio? Nada o sugeria. A coisa não atava nem desatava, até que a insólita demissão do Primeiro Ministro, no passado mês de Novembro, precipitou uma revolução inesperada. Sem que ninguém prestasse a devida atenção, o Governo demissionário enviou ao Presidente para promulgação um Decreto-Lei que transformava radical e abruptamente o modelo de formação de professores. E, no frenesim legislativo que se seguiu à demissão, a promulgação aconteceu sem mais questionamentos nem reflexões.

O Decreto-Lei a que me refiro é o nº 112/2023, e o seu número só pode dever-se ao facto de haver realmente uma estranha e subtil ironia em tudo isto. Ironia porque, na verdade, não se trata de algo feito com a intenção de melhorar, com ponderação e critério, o modelo de formação de professores até agora vigente. Longe disso. Trata-se antes (e daí a ironia do número 112) de responder a uma emergência – a emergência da falta de professores no país – tentando servir-se, para isso, do enquadramento jurídico da formação de professores. Dito de modo mais singelo, trata-se de tentar arranjar professores rapidamente e em força, procurando-os por todo o lado de onde possam brotar: desde investigadores, mestres e doutores sem esperança numa carreira que corresponda às suas expectativas na investigação, ultra-qualificados mas sem qualquer formação didática nem pedagógica, até aos estudantes estagiários ainda em formação. Sobretudo estes serão agora mão de obra disponível, aproveitada para tapar os buracos causados pela falta de professores em algumas zonas do país, particularmente em Lisboa e no Sul.

Com esse propósito, o novo Decreto-Lei acena aos futuros estagiários com a remuneração dos estágios e prevê que estabeleçam contratos de trabalho de 12 horas letivas com as Escolas. Tal não resolve, naturalmente, qualquer problema. Mas dá a aparência de resolver. Pelo menos, constrói a imagem de que um Governo que manifestamente não cuidou dos problemas nem se interessou por antecipá-los pensou em tudo. E encena a ficção de que há um plano consistente que mobiliza, para tal, os meios necessários. Trata-se da produção de uma pura ilusão. Ilusão, desde logo, porque os estagiários atuais – há que dizê-lo, como dizia antigamente um humorista, com frontalidade – não têm ainda formação suficiente e não são ipso facto professores (é por isso que, na sua lecionação, precisam do acompanhamento do Orientador, como até agora estava previsto). Partir de um princípio diferente significa apenas fingir que as coisas não são como são. Significa fazer passar por professores, dando-lhes turmas próprias, estudantes que ainda o não são. Significa atirá-los, sem a necessária preparação, para a frente de turmas que nada fizeram para merecer essa sorte. E significa, no fundo, enganar futuros alunos e respetivas famílias.

No entanto, não são apenas alunos e famílias os iludidos. Iludidos são também os futuros Orientadores, a quem é agora sugerido que se oferece a reposição do princípio, anteriormente vigente, da redução da componente lectiva do seu horário. Na verdade, em nada se trata da reposição da situação anterior. A celebrada redução limita-se a três horas por um estagiário, podendo acumular mais uma hora por novo estagiário até um limite máximo de seis. Isso significa que, se nos restringirmos às vantagens materiais, ser Orientador de Estágio continuará a ser quase tão pouco compensador quanto o era até agora. E significa também que, quando alguém estiver generosamente disponível para sê-lo, a disponibilidade limitar-se-á previsivelmente ao acompanhamento de um único estagiário. Ou seja, na prática, sem que tal seja dito para alimentar a ilusão, tenderão a acabar os núcleos das áreas disciplinares, reduzidos agora quase sempre a um estagiário por Escola. De forma silenciosa, cessarão as interações entre colegas, a comparação de práticas letivas, a reflexão crítica e a partilha de experiências que os antigos estágios permitiam.

Porém, além de Alunos e Orientadores, os grandes iludidos por todo este processo serão mesmo, por paradoxal que pareça, os próprios Estagiários, cujo aplauso o Governo procura suscitar sob a evocação dos antigos estágios remunerados. Ser-lhes-á inculcado que, não frustrando expectativas, o Governo voltou a remunerar os estágios. Tudo o resto, dir-se-á, serão minudências e detalhes. Mas os supostos detalhes são aqui o que importa. Afinal, a remuneração do serviço letivo terá apenas em atenção 12 horas, com um salário exíguo e a obrigatoriedade de exclusividade. Com turmas próprias, os futuros estagiários terão de fazer a sua formação onde houver escolas que, desesperadas pela falta de professores, se verão forçadas, a contragosto, a entregar-lhes as suas turmas. Assim, passada a euforia inicial pela reposição da remuneração, o que se seguirá é previsível. Os jovens estudantes de mestrados em ensino do Minho ou de Coimbra, por exemplo, terão de ir fazer estágio para o Algarve ou para Lisboa, onde faltam professores. Os estudantes usarão a sua remuneração para pagar um quarto barato e pouco mais, em regiões onde o custo de vida é maior que o da cidade onde vivem. E o resto das suas despesas ficará, como sempre, por conta das respetivas famílias.

Em resumo, portanto, o que as medidas de emergência do «112» estabelecem é o simples desmantelamento de uma estrutura de formação de professores com limitações, mas honesta, coerente e estabilizada, em nome do cultivo de uma ilusão de curto prazo. E esse desmantelamento acontece com o propósito de fingir que o Governo resolverá um problema sem verdadeiramente nada fazer para resolvê-lo. Diante de tudo isto, talvez seja aconselhável, pelo menos, estender a todo o território nacional o que já nos Açores um mínimo de sensatez tornou possível: a coexistência entre o regime antigo de formação de professores, possibilitando a realização do estágio em turmas do Orientador, e o novo formato entretanto introduzido. Não sendo esse o caso, o futuro próximo não só não responderá ao desejo de formar rapidamente mais professores como até se arrisca a ter consequências inversas. É aliás esse, muitas vezes, o resultado das passagens abruptas da inércia à impulsividade irrefletida. É que governar implica lidar com a realidade, e não legislar como se um discurso motivacional pudesse fazer dela o que quiséssemos. Legislar desta forma não é governar, é fazer propaganda e fabricar ilusões. Tendo em conta a situação em que nos encontramos, usar a formação de professores para ficções propagandísticas e entusiasmar incautos não será certamente a opção mais avisada.