Em plena era digital, o nomadismo digital, o teletrabalho e as videoconferências e, de uma maneira geral, os modelos híbridos de trabalho flexível, irromperam bruscamente nas rotinas da nossa realidade material e alteraram o mapeamento dos nossos pontos de interesse e referência. De certo modo, nós próprios, fomos transformados em sistemas de informação geográfica, permanentemente rastreados e assinalados. Estamos a assistir à formação de uma nova geografia sentimental que começa nas comunidades online das redes e plataformas, onde se manifesta a força dos laços fracos (Granovetter, 1973), atravessa os locais mais variados de trabalho presencial, remoto e híbrido e termina nas comunidades reais, nossas conhecidas, onde se revela a fraqueza dos laços fortes.

A sociedade cosmopolita em que vivemos deixa prenunciar mudanças culturais e civilizacionais de grande alcance durante o século XXI. Lembremos as principais. As alterações demográficas e os problemas específicos das sociedades seniores, as alterações climáticas e os problemas de abastecimento local e segurança alimentar, as alterações dos mercados de trabalho e o desemprego estrutural nas faixas etárias mais jovem e mais velha, os riscos geopolíticos globais próprios de um mundo multipolar e os recursos crescentes despendidos em cooperação e segurança internacionais para controlar e mitigar o risco sistémico e moral dos atores nele envolvidos, como, infelizmente, agora se revela com a guerra entre a Ucrânia e a Rússia.

Nos últimos anos um grande desafio emerge sob a forma de uma nova economia associada ao universo das tecnologias da informação e comunicação, às plataformas digitais e às redes sociais, uma transformação paradigmática designada como a mutação dos “Quatro D”: digitalização, desmaterialização, desintermediação, e o seu corolário lógico, o desemprego. O paradigma dos “Quatro D”, segundo a ideologia dominante, conduz-nos até à sociedade do conhecimento, ao capitalismo cognitivo e à economia dos bens comuns colaborativos. É no interior deste complexo enquadramento global e tecnológico que emergem novas correntes de pensamento e geografias económicas mais inteligentes e imateriais associadas à internet e à tecnologia das redes e plataformas digitais. São movimentos liderados pelas gerações que se movem à vontade no ecossistema tecnológico próprio dos sistemas interativos de comunicação.

Agora que se fala tanto em economia digital 5G importa fazer uma reflexão sobre a digitalização dos territórios e a sua atratividade e ocupação futura nesse contexto. Ora, a constelação tecnológica e digital que aí vem é uma autêntica revolução laboral e socioprofissional: o Big Data e a computação em nuvem, a realidade aumentada e virtual e os interfaces cérebro-computacionais, a internet dos objetos, a inteligência artificial e as máquinas inteligentes, as redes distribuídas e a computação periférica.

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Nesta nova constelação tecnológica, a digitalização dos territórios torna-os mais apetecíveis para os nómadas digitais, pois se conseguirem ser atrativos passam a constar dos pontos de ubiquidade dos inovadores digitais. Com efeito, a digitalização dos territórios, que a convergência das redes 4G e 5G permite, torna-os lugares de destino de atividades económicas, artísticas, desportivas, culturais e científicas e, como tal, objeto de inúmeros movimentos pendulares de visitantes que buscam essas atividades e infraestruturas. Estamos a falar de incubadoras tecnológicas, start up, espaços de coworking, projetos de investigação e cooperação internacional, jornadas científicas, residências artísticas e semanas culturais, percursos de natureza e desportos radicais, observação de endemismos locais de fauna e flora e, obviamente, a visitação turística. Tudo atividades que o marketing digital coloca ao alcance de qualquer cidadão em qualquer parte do mundo.

Esta revolução nas atividades tecnológicas e digitais, nos mercados laborais e nas competências socioprofissionais reclama, no mesmo sentido, uma revolução nos ecossistemas inteligentes de acolhimento territorial onde seja possível discutir e preparar os termos da passagem de uma plataforma online para uma comunidade offline. Ora, essa estrutura de acolhimento territorial pode não estar à altura da nova condição digital, feita, justamente, de nomadismo, topoligamia e ubiquidade. Se não existir um ecossistema inteligente de acolhimento onde cada individuo digitalizado possa encaixar a sua estratégia digital, isto é, otimizar o seu ponto de ubiquidade (o ponto onde maximiza o uso do seu tempo digital), e a sua topoligamia pessoal (o ponto onde maximiza o seu mapa de lugares centrais) tudo pode facilmente esboroar-se. Vejamos alguns aspetos deste novo ecossistema tecnológico e digital e sua interação com o território.

  • Em primeiro lugar, as opções tecnológicas e digitais irão determinar, cada vez mais, a matriz base de um território que, assim, passará progressivamente de um território-zona (T-Z), hierárquico, vertical e com fronteira, para um território-rede (T-R), colaborativo, horizontal e sem fronteiras; além disso, a tradicional coletividade territorial, a autarquia local, deixará de se confundir com a sociedade política local, que se expandirá por esta via digital e colaborativa;
  • Em segundo lugar, a transformação digital modificará bastante a dotação de recursos de um território; assim, um T-R terá tanto de insourcing como de outsourcing e, por essa via, o seu campo de possibilidades e desenvolvimento poderá ser extraordinariamente aumentado, desde que exista inteligência coletiva para tanto;
  • Em terceiro lugar, em termos de cobertura digital 4G e 5G, a cada velocidade da rede corresponderá um espaço-tempo diferenciado e, nessa transição diferenciada, muitas configurações territoriais, territórios-rede e cadeias de valor irão emergir;
  • Em quarto lugar, a maior velocidade, a menor latência e a maior conectividade da cobertura digital das redes 4G e 5G aumentam, em princípio, o número de nómadas digitais, o seu mapa de lugares frequentados (topoligamia) e os seuspontos de ubiquidade (a maximização de tempos digitais disponíveis); nesta medida, cada nómada digital constrói um determinado mapa de lugares centrais, uma geografia pessoal, de acordo com a sua própria idiossincrasia;
  • Em quinto lugar, em cada ponto de ubiquidade o nómada digital utiliza várias plataformas de colaboração e partilha; nesta medida, um território-rede terá cada vez mais atividades, mas não terá, necessariamente, mais habitantes dado que o nomadismo prevalece sobre a fixação e a residência;
  • Em sexto lugar, é muito importante que a digitalização dos territórios não se reduza a um quisto tecnológico implantado em algum ponto do território; por isso, é fundamental que a digitalização do território signifique mais e melhor inteligência coletiva territorial (ICT), maior capacidade de decisão própria e não seja mais um fator adicional de exclusão social;
  • Em sétimo lugar, a digitalização dos territórios torna-os mais visíveis no ciberespaço, como se fossem cenários de imagens virtuais; de repente, os sinais distintivos territoriais – as produções locais, o património, os endemismos, as paisagens, o artesanato – ficam no radar da procura mundial e para toda esta transformação é imprescindível uma nova arquitetura tecnológica e digital de informação e conhecimento;
  • Em oitavo lugar, a produção de informação e conhecimento não é independente das opções de tecnologia digital que estão disponíveis e do seu preço/custo; um sistema TIC mais evoluído produz mais funcionalidades, mas pode não ser rentável em determinados territórios por falta de utentes e utilizadores; se a opção recai sobre um sistema menos complexo e mais barato, essas funcionalidades não são oferecidas e o território fica privado dessas opções que, na prática, se traduzem em menor nomadismo e topoligamia;
  • Em nono lugar, na relação entre opção tecnológica, serviços oferecidos e coesão territorial cria-se, muitas vezes, um círculo vicioso difícil de debelar; geralmente, instrumentaliza-se um território e a sua estratégia fica subordinada às tecnologias disponíveis e ao lobby do negócio informático; ora, é o inverso que deve acontecer, ou seja, é a inteligência coletiva territorial que deve dizer qual é o caminho e qual é a informação e o conhecimento que são pertinentes e mobilizáveis para o efeito;
  • Em décimo lugar, os territórios-zona funcionam numa lógica vertical e obedecem maioritariamente às regras da economia regional mais convencional, enquanto os territórios-rede funcionam numa lógica mais horizontal e de acordo com as novas regras da economia digital; isto significa que há uma coabitação colaborativa e institucional que é imperioso realizar sob pena de os nossos nómadas digitais serem uma espécie de extraterrestres em trânsito permanente.

Nota Final

A terminar, deixo um aviso à navegação. As áreas transversais como são a transição ecológica, a transição digital e a coesão territorial, devido aos inúmeros efeitos externos, positivos e negativos, que produzem, necessitam urgentemente de uma administração territorial dotada de um elevado grau de racionalidade sistémica. Já não estou a falar de nomadismo digital, topoligamia e ubiquidade, mas de uma administração dedicada, de uma estrutura de missão, de uma plataforma territorial inteligente que seja capaz de limitar os efeitos difusos e dispersivos e aumentar as economias de rede e aglomeração da sua comunidade territorial colaborativa. Donde se retira que os dois planos, o plano micro dos comportamentos individuais (mais móveis) e o plano meso das estruturas de acolhimento territorial (mais fixos) estão intimamente associados. Em resumo, uma nova geografia sentimental em redor de modelos híbridos de trabalho flexível, mas, também, e talvez mais importante, em redor de novos estilos de vida em comunidade.