Parece que há um novo jogo de salão na Europa: votarias sim ou não, se fosses grego? Cara ou coroa? Dispenso a aposta. Não sou grego, mas acima de tudo, não acredito, ao contrário de tantos dos meus contemporâneos, nas virtudes da última golpada de Tsipras para pôr termo à incerteza e à deriva destes últimos meses. O referendo de hoje na Grécia pôs demasiada gente num estado apocalíptico. É como se, finalmente, tudo se fosse resolver. Desculpem mais uma vez o meu cepticismo, mas desconfio que não. É esse o primeiro aviso que talvez convenha fazer por causa da Grécia.
Tsipras é manhoso. Pede um voto no “não”, mas para, diz ele, poder assinar logo a seguir um acordo vantajoso com os credores europeus. De modo nenhum está a propor a saída do euro. O seu ministro da Economia argumentava esta semana que mesmo que os outros países o desejassem, ninguém pode forçar a Grécia a sair da zona do Euro. Nem previsto nos tratados europeus. E alguns economistas têm de facto admitido que talvez seja possível que, mesmo com o Estado e os bancos falidos e já sem euros, a Grécia se possa aguentar teoricamente dentro do Euro. Foi provavelmente prevendo esse desenlace, que Donald Tusk, o presidente do Conselho Europeu, dizia ontem que talvez a zona Euro tivesse de se habituar à ideia de contar com um Estado em bancarrota. Wolfgang Schauble, o ministro das finanças alemão, acrescentou enigmaticamente que, se a Grécia ficar sem euros, será apenas “temporariamente”. O que é que isto quer dizer? Quase de certeza que o referendo, seja qual for o resultado, não será o fim da história da Grécia na zona do Euro. Nunca nada na Europa foi simples, e não é agora que vai começar a ser.
Da mesma maneira, este referendo pode também não ser o fim da história do Syriza no governo da Grécia. Varoufakis já prometeu demitir-se se ganhar o “sim”. Mas Tsipras ainda não explicou o que fará. Também se demite? Continua? A questão, muito provavelmente, depende menos de Tsipras do que da oposição. Há na Grécia a alternativa de governo que não havia em Janeiro, quando o Syriza ganhou? Imaginem que Tsipras perde, mas com o “não” como preferência de mais de 40% dos votantes. Tsipras vai certamente reivindicar esse resultado como só seu, enquanto o “sim”, embora maioritário, será um património a dividir entre vários partidos e tendências. Tsipras poderá assim tentar imitar o Partido Nacionalista Escocês, que perdeu o referendo da independência o ano passado, mas conseguiu fazer do “sim”, embora minoritário, a base eleitoral com que, este ano, passou a dominar completamente a política na Escócia. É verdade: a Escócia não estava falida como a Grécia. Talvez Tsipras, que pôs os gregos em fila nas caixas automáticas, esteja condenado. Mas nunca devemos subestimar um demagogo cínico e sem escrúpulos, como ele.
O segundo aviso diz respeito ao que está em causa. Muito naturalmente, a maior parte da imprensa e dos comentadores aproveitou a Grécia como um cabide para pendurar todas as suas ansiedades e todos os seus sonhos. Pouca gente se dispôs a admitir que o referendo incidia apenas sobre um suposto acordo entre a Grécia e os seus credores, com repercussões incertas para a permanência da Grécia no Euro e para integração europeia. Parece ser muito mais excitante imaginar que tudo está em causa: não apenas o Euro e a União Europeia, mas também a soberania das nações, a democracia na Europa, o equilíbrio geo-político com a Rússia, o Estado social, a economia de mercado, enfim, a civilização ocidental, toda a história da humanidade, o mundo.
O clamor à volta deste referendo será provavelmente um documento inestimável para historiadores futuros: nada os fará perceber melhor o auto-centramento dos europeus do nosso tempo, esta bizarra ilusão de que tudo depende da vontade de cada um, e que todos podemos, se nos apetecer, brincar à história. Mas a Grécia, só por si, não é necessariamente o fim nem o começo de nada. A soberania nacional assenta no crédito nacional, não na ajuda financeira de outros países. A democracia não é a possibilidade de, votando, conseguirmos tudo: é apenas a possibilidade de votar. O Estado social e a economia de mercado não são a negação um do outro, mas mais provavelmente a possibilidade um do outro. E finalmente, se quiserem olhar para um sítio onde a soberania nacional, a democracia e os equilíbrios geopolíticos estão em causa, não olhem para a Grécia, mas para a Ucrânia, que demasiados europeus parecem dispostos a entregar à rapacidade de Putin.
Há, finalmente, um terceiro aviso, para consumo doméstico. É este: as eleições portuguesas deste ano não vão ser disputadas na Grécia. De um lado e do outro da nossa política doméstica, muita gente parece convencida de que são os eleitores gregos, e não os eleitores portugueses, quem há-de eleger o próximo governo de Portugal. O Syriza perde (mas ninguém sabe como é que o Syriza pode perder), e a actual coligação governamental ganha, porque fica provado que não havia alternativa à “austeridade”. O Syriza ganha (mas ninguém sabe ao certo como é que o Syriza pode ganhar), e a actual coligação governamental perde, porque fica provado que, afinal, havia a tal alternativa.
É como se a Grécia fosse o nosso laboratório. Não é. E com isto, não estou a argumentar que os acontecimentos gregos não possam ter repercussões directas ou indirectas, e criar um ambiente mais favorável a este ou àquele concorrente às nossas eleições. O que estou a dizer é que, aconteça o que acontecer, tudo será provavelmente tão complicado, tão incerto durante tanto tempo, que nada dispensará os nossos políticos de nos tentarem persuadir por eles próprios, sem ajudas gregas, e nada nos dispensará a nós de pensarmos um pouco no que queremos, independentemente do que querem ou não querem os gregos. Há mais mundos.