Durante a polémica sobre os familiares deste governo, o PS começou por nos tentar convencer que é tudo normal e, por fim, António Costa sugeriu que se estabelecessem regras legais. Como é evidente, este é um problema ético e não um problema legal. Os argumentos do PS são facilmente rebatíveis e os limites éticos são fáceis de estabelecer. Comecemos pelos argumentos.
O primeiro argumento é o de que estas nomeações se devem ao mérito dos nomeados. O problema é que, nestes casos, as pessoas não são nomeadas apenas pelo seu mérito, mas pela escolha direta dos titulares dos cargos. Se fossem nomeados pelo mérito, a nomeação seria precedida de um concurso público. A nomeação e o exercício de cargos de confiança política pressupõem transparência na motivação de quem nomeia, o que é dificilmente compatível com laços familiares próximos.
O segundo argumento é o de que é normal em algumas famílias haver vários políticos. Assim como há famílias de agricultores, ou de médicos, ou de carpinteiros, ou de advogados, também há famílias de políticos. É evidente que o contexto em que crescemos condiciona os nossos gostos e interesses. É normal que numa família existam várias pessoas que se interessem por seguir uma carreira política. Mas isso não implica que estejam vários simultaneamente no governo, nem que se nomeiem uns aos outros para cargos políticos.
Depois vem o argumento de que os “candidatos” a nomeados não podem ser prejudicados pela sua ligação familiar. Este argumento é próprio de quem acha que o governo é uma agência de emprego. Não existe qualquer direito, nem sequer expectativa, a ser nomeado. A nomeação deve ser vista como um privilégio e só alguns estão em condições para o efeito.
Por fim, ouvimos o argumento de que os outros governos também tiveram familiares no Governo. Tentou-se argumentar que era uma prática generalizada. É um argumento pueril, já que os erros dos outros não justificam os nossos erros. Além de que uns (como Marques Mendes) ainda admitem que erraram, outros nem isso! Está longe de ser demonstrado que qualquer outro governo tivesse chegado a este grau de familiarização do governo. Pior do que isso: confundem-se cargos de eleição, como é o caso das irmãs Mortágua, com cargos de nomeação.
Rebatidos os argumentos, importa ajudar o PS a traçar as tais linhas vermelhas.
A primeira é a de que não podem existir familiares diretos em órgãos executivos do Estado, seja uma Câmara Municipal, seja um Conselho de Administração de uma empresa pública, seja o Governo do país. A razão é muito simples. Os membros destes órgãos são solidários entre si e têm o dever de escrutinar as decisões uns dos outros. Isso implica que não se deve de maneira alguma misturar relações pessoais próximas com as razões políticas. Quando o ministro Vieira da Silva apresentar mais uma iniciativa legislativa sem prévia negociação em sede de Concertação Social, o que dirá a ministra Vieira da Silva? E se voltarmos a ter uma crise de incêndios, o que dirá a ministra do Mar sobre a atuação do seu marido, o ministro da Administração Interna? Prevalece a obrigação política ou a solidariedade familiar? É esta dúvida que nem sequer deve existir e é por isso que a situação é indesejada.
Outra linha vermelha tem a ver com a nomeação de um familiar para o gabinete do governante. E o motivo é semelhante. Estas nomeações dependem de uma responsabilidade política, exigindo-se um escrutínio e uma liberdade que não é compatível com cumplicidades familiares. Só que a limitação não se circunscreve ao seu gabinete, abrangendo também a nomeação para instituições sob a dependência do mesmo órgão executivo. E a este nível temos vários exemplos neste governo, assim como tivemos no passado o exemplo negativo de Carlos César.
Uma terceira linha vermelha tem a ver com a nomeação de familiares de forma cruzada entre vários ministérios. O motivo é igual ao anterior, porque a dependência que se cria é idêntica à da nomeação dentro do gabinete do próprio governante. Como podemos então distinguir uma nomeação acidental de uma nomeação sistémica? Se em cada governo estiver nomeado um familiar de uma pessoa da hierarquia do partido do governo, todos concordarão que é inaceitável e que se trata de uma rede de nomeações. Para que seja acidental, terá de haver, no mínimo, o dobro dos gabinetes sem qualquer caso destes em relação àqueles que têm, no máximo, um caso. Por outras palavras, as nomeações de familiares não podem exceder 1/3 dos membros do governo. De acordo com este critério generoso, na totalidade do governo, o limite máximo aceitável seriam 20 nomeações de familiares. Este governo ultrapassa em dobro esse limite.
Mas resta definir o que são familiares para este efeito. Na falta de melhor, proponho recorrer ao conceito legal de herdeiro. Além do cônjuge, ascendentes (pais e avós) e descendentes (filhos e netos), irmãos e seus descendentes, existem os colaterais até ao quarto grau (chamados primos direitos). Depois destes vem o Estado, sendo que esse é na realidade o nosso familiar mais próximo. Na verdade, numa família de classe média com 2 filhos, entrega-se mais dinheiro ao Estado do que aquilo que se gasta com cada um dos filhos. Será esse o motivo da confusão entre Estado e Família?
Não deixa de ser curioso que, neste contexto, as únicas demissões sejam por causa de uma nomeação de um familiar no último grau relevante. Foi uma demissão quase por engano. Uma coisa é certa, esta história toda está a criar mau ambiente!
Advogado