Texto originalmente publicado pelo portal dos jesuítas em Portugal, Ponto SJ

Uma das vantagens, ou desvantagens, de viver fora de Portugal é que as “polémicas”, grandes ou pequenas, que “assolam” o nosso país ao ritmo do ciclo das notícias chegam-nos, em geral, tarde e sem o dramatismo dos inícios. Há cerca de duas semanas atrás, na missa transmitida na RTP, leu-se um trecho do capítulo quinto da carta de São Paulo aos Efésios e a segunda leitura da missa transformou-se naquilo que só muito raramente é: o centro das atenções. A situação dramática que se vive no Afeganistão criou o contexto e as palavras da carta “incendiaram” a opinião pública, reclamando até a intervenção da Conferência Episcopal Portuguesa. Passada a “tempestade mediática”, e sem outra pretensão que contribuir para esse exercício difícil de refletir calmamente sobre as coisas, deixo três notas breves.

1 Paulo (ou o autor da carta aos Efésios) foi um judeu que viveu na parte oriental da bacia do Mediterrânio no século I da nossa era. Tenho a certeza de que a maioria dos leitores sabe isto e, por isso, peço que me perdoem a repetição de matéria sabida, mas parece-me que este facto elementar e as suas inevitáveis consequências escaparam tanto a “indignados” como a “apologistas”. O autor é um “filho do seu tempo” e é natural que os seus escritos reflitam não só as conceções “científicas” e historiográficas dos seus contemporâneos, mas também a sua maneira de olhar para e de falar sobre a sociedade e a família. Cada um de nós sabe, se tiver a humildade para o reconhecer, o quão difícil é “elevar-se acima” das circunstâncias concretas nas quais nascemos, fomos educados e presentemente vivemos. E, quando o conseguimos, o mais das vezes só o fazemos parcial e tardiamente. É, por isso, tão insensato condenar o autor da carta aos Efésios por pensar a partir do quadro jurídico-social próprio do seu tempo como afirmar, numa tentativa de vencer um extremismo com outro, que Paulo foi o maior defensor dos direitos da mulher que alguma vez o planeta Terra conheceu. Nesse sentido, e ainda antes de entrar em discussões de cariz filológico ou exegético, é preciso ser realista e reconhecer o peso das circunstâncias, as de Paulo e as nossas. E nós, crentes, não escapamos a este dever: a Palavra de Deus chega-nos sempre mediada por palavras humanas e seria um erro (e quase uma heresia!) negar a circunstancialidade que Deus decidiu abraçar.

2 Entre fundamentalistas do texto e fundamentalistas do contexto, venha o diabo e escolha! Talvez o traço mais marcante dos debates e intervenções que se seguiram àquela inicialmente plácida manhã domingueira tenha sido a luta entre os que só leem o texto, ou melhor, os dois ou três versículos mais controversos (Carta aos Efésios 5,22-24), e os que insistem que o que mais conta (ou o que conta) é o contexto (daquela passagem concreta). Para os primeiros, ou para muitos dos primeiros, bastam as primeiras três palavras (“As mulheres submetam-se…”) para julgar o autor e equiparar Paulo ao Mullah Mohammed Omar. Para os outros, pouco ou quase nada conta o que dizem estes versículos concretos, porque no contexto exorta-se a que “todos sejam submissos uns aos outros no temor de Cristo” (5, 21) e reclama-se dos maridos que “amem as suas esposas, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (5, 25), o que, dizem, é bem mais exigente. Neste caso, como em tantas coisas na vida e na Igreja, é preciso ter a ousadia da moderação. A controversa formulação nos versículos 22-24 é – não devemos ter medo de o dizer! – fruto do tempo em que a carta for escrita e querer negá-lo ou embarcar em sibilinas considerações filológicas é construir castelos sobre a areia. Ao mesmo tempo, há que reconhecer que o texto insiste na reciprocidade e isto talvez nos pareça pouco, mas não o era no tempo de Paulo. Pedir a todos que se submetam a todos “em Cristo” e recordar aos homens o dever (!!!) de amar e de entregar a vida pelas esposas eram passos corajosos numa sociedade rigorosamente estratificada e hierarquizada, na qual o matrimónio era tudo menos uma “união de iguais”. Aliás, a coragem não é tanto mérito do autor da carta aos Efésios, mas das primeiras comunidades de cristãos onde a mensagem do evangelho fomentou uma certa (e sempre imperfeita!) suspensão das hierarquias tradicionais e dos tabus sociais. E, sob este aspeto concreto, talvez ainda tenhamos alguma coisa (!) a aprender com a epístola aos Efésios e o legado literário e espiritual dos primeiros seguidores de Jesus…

3 A solução nunca é infantilizar. Chegados a este ponto, a questão, que muitos se colocam, é se ainda faz sentido ler este texto concreto na missa: não seria melhor evitar confusões? Não há alternativas melhores? Confesso que a “opção pragmático-pacificadora” é tentadora, mais ainda num tempo, como o nosso, onde ninguém está para explicações e nuances. Mas, o que significaria “chutar para debaixo do tapete litúrgico” o capítulo cinco da carta aos Efésios? Ou outros textos cujas formulações não correspondam perfeitamente (!) ao que nos parece justo e correto dizer na terceira década do século XXI? Temo que uma tal solução seja a pista falsa, não tanto porque significaria ceder ao “politicamente correto” (o que não é sempre um erro!), mas porque só serviria para nos infantilizar ainda mais como sociedade e Igreja. Os textos da tradição, tanto os sacros como os profanos, exigem a sabedoria da “leitura lenta” e reclamam a justa benevolência que nasce da perspetiva histórica. “Cancelar” um texto por causa de uma formulação mais datada é trocar a inteligência das coisas pelo moralismo fácil da indignação e tratar os outros, os que não (mais) o escutarão, como “pobres de espírito”, crianças a quem só se pode dar “Cerelac literária”, não vá a pessoa “engasgar-se”. Dificilmente se pode pedir, em seguida, que apontemos para o alto e cultivemos o discernimento, possivelmente a mais exigente e necessária das tarefas espirituais.

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