A desordem e a violência num regime com eleições livres, e liberdade de expressão e manifestação, nunca têm justificação, seja qual for a causa que os violadores da lei pretendam promover. Isso vale para os bolsonaristas em Brasília, como para os esquerdistas que há semanas trazem o Peru a ferro e fogo, ou para os activistas do Black Live Matters que saquearam cidades nos EUA em 2020, ou ainda para os ecologistas que vandalizam museus. Todos são inimigos da democracia, porque são minorias que, incapazes de persuadir e eleger num regime que lhes dá liberdade para persuadir e eleger, resolveram impor a sua visão das coisas pela força e pela intimidação. Em democracia, só há um meio aceitável para um grupo influenciar políticas: é tentar tornar-se uma maioria e obter um consenso. Para isso, terá de convencer uns, e chegar a compromissos com outros. Há quem ache que tem o direito de se dispensar desse trabalho democrático, seja porque considera a causa que defende muito urgente, seja porque julga o sistema “viciado”. Justifica o rigor das autoridades, porque, mais do que a força dos seus inimigos, é a fraqueza dos seus defensores que subverte uma democracia: a impunidade de um grupo violento é um sinal de que a violência passou a ser o meio de decidir debates e controvérsias.

São aqueles que governam que mais meios têm para degradar uma democracia. Por isso, no caso do Brasil, devemos olhar também para Lula. Bolsonaro criou o ambiente para os motins de Brasília com as suas dúvidas sobre o sistema eleitoral – dúvidas tão sem fundamento, que o mesmo sistema deu a vitória aos partidos que o apoiavam nas eleições do Congresso federal. É o risco de deixar um demagogo tomar a liderança, embora seja justo lembrar que ninguém mais contribuiu para isso do que Lula, com o desencanto geral que resultou da sua corrupção e abuso do poder. No entanto, também é certo que 1200 vândalos não são um golpe de Estado, e que nenhum dirigente, nem Bolsonaro, os aplaudiu. Os desordeiros merecem ser punidos, mas seria uma infelicidade para a democracia no Brasil se Lula aproveitasse os desmandos de umas centenas para criminalizar a oposição e os 58 milhões de brasileiros (49% do eleitorado) que votaram em Bolsonaro. Que há essa tentação, viu-se no uso por Lula do termo “genocida” para se referir ao seu rival, como se os eleitores de Bolsonaro tivessem escolhido Hitler. É o equivalente – sim, o equivalente – da suspeita lançada por Bolsonaro sobre o sistema eleitoral. Teriam todos os apoiantes de Lula ficado quietos se por acaso alguém que lhes garantiram ser um “genocida” tivesse ganho as eleições? Lula ainda não provou que o único dirigente político irresponsável do Brasil é Bolsonaro. Tem agora essa oportunidade.

Finalmente, o problema não é a “polarização”, e não se resolve apelando aos “moderados” de todos os lados para se aglomerarem no poder, excluírem os “extremos” e evitarem divisões e debates. Funcionaria assim melhor a democracia? De modo nenhum. A democracia também vale pela possibilidade de divisão e de debate sem guerra civil. Anular essa possibilidade, através de uma concentração política de “moderados”, tenderia a reduzir o leque de opções e a diminuir o escrutínio. O ponto não está em obter unanimidades ideológicas, mas em fazer respeitar a lei e os procedimentos. Isso quer dizer que a única linha de exclusão política sistemática que faz sentido numa democracia é aquela que diz respeito à violência. Quem, seja qual for a razão, se convenceu de que ganhou o direito de recorrer à violência, deve passar a ser um caso judicial.

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