1. Um grande homem de teatro. Actor e encenador (ainda bem que não tenho que escolher qual dessas duas naturezas suplanta a outra), protagonista intenso de múltiplas peças, honrando o texto e dignificando os felizes contemplados autores que o tiveram como intérprete ou director, Diogo Infante, sóbrio e reservado, é o produto  de uma boa dose de autodomínio revista por uma bem educada autoridade própria.

O que o torna de imediato confiável: seja qual for a situação, ela está controlada. Há também o rigor para consigo próprio e há – e é isso que talvez mais o distinga – a segurança que transmite nas situações mais tensas ou nas questões mais triviais e que não pode deixar de inspirar os actores que dirige, os colegas com quem contacena, as equipas com quem trabalha. O sorriso sim, pode por vezes ser “figé” – só um desatento não o percebe –, mas quem não recorre a um sorriso postiço por exaustão ou contrariedade? E depois, claro, há ainda – ou sobretudo? – as suas defesas, inexpugnáveis muros que ergue à sua volta, contra toda a sorte de assaltos. Sabendo que, regra número um, tem de se preservar para (poder) seguir em frente.

No Trindade, teatro que agora dirige, irá interpretar, a partir desta quinta-feira, a peça de Yasmine Reza, “O Deus da Carnificna”, também por si encenada. Não conheço a peça, conheço-o a ele. No palco ou no écran é um acontecimento. Amanhã também.

2. Fui á procura de Diogo Infante e encontrei-o na Plural (TVI), onde é um dos protagonistas da novela “Jogo Duplo”.

Nos imensos estúdios havia uma surpreendente e bem disposta cumplicidade no ar, risos e sorrisos, um ambiente leve e no entanto… que complexo e vasto mundo aquele: um formidável naipe de actores, técnicos, realizadores, autores, directores de actores, assistentes, aderecistas, cabeleireiras, maquilhadoras, guarda- roupa, motoristas, catering… Centenas de pessoas movendo-se segundo uma ordem invisível que sem sobressalto lhes ditava o que fazer e onde e quando.

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“Jogo Duplo” é uma surpresa pela manifesta diferença da sua estrutura narrativa, longe do já feito e refeito até aqui. Mas bem mais que “duplo”, o “jogo” aqui é duro, por vezes luminoso e, de vez em quando, quase sórdido. Ou o eterno combate entre o bem e o mal.

3. Diogo Infante já está vestido de “Manuel Quian”: traje negro, camisa escura aberta, muitos anéis e muita crueldade doublé de falsa doçura. Personagem manipuladora e implacável, é como se viesse do inferno e quase me engasgo a comer a sanduíche (não há tempo para almoço), tão impressiva é a sua aparência.

“As linhas de acção deste texto têm um determinado tipo de preocupações que é invulgar na escrita de uma novela. E o facto de estarmos no segundo horário dispensa o canal da preocupação de temas generalistas ou abrangentes ‘para agradar’, podemos ser um bocadinho mais adultos. Nos temas, na linguagem por vezes mais dura e mais crua.

Arriscaram. E Diogo Infante, também?

“Logo às primeiras leituras apercebi-me que o meu personagem era estranhíssimo. Resisto sempre à tentação de julgar os personagens que interpreto, tenho de gostar deles, mas aqui há uma dimensão que quase me escapa, umas ‘cores’ carregadas que não consigo encontrar completamente…”

Ambos sabemos que não é verdade, o actor tem o seu “Quian” na mão e na pele, enchendo o écran do seu maléfico magnetismo. O que não sei – e me interessa mais – é como ele, actor, director, encenador, gestor, consegue ser tanta gente ao mesmo tempo, tendo de ser bom nessa desmultiplicação e bom no seu resultado. Vivendo em Sintra, gravando em Bucelas e dirigindo e representando num teatro no Chiado.

Pergunto-lhe: é um dom, há uma receita, um segredo? Houve um treino?

“Disciplina, disciplina”, diz-me ele. “Recebo os planos de filmagens da novela a meio da semana e apercebo-me logo do tempo que tenho livre. Se gravo de manhã, vou à tarde para o teatro e vice-versa. E como tenho as noites livres, os ensaios da peça estão sempre assegurados”. Sorriso não “figé”: “são dias muito longos…”

“Tenho uma grande sorte em contar com uma memória fantástica. Só pela repetição decoro logo. E aqui na novela tenho um truque: não decoro… reproduzo o sentido, respeitando obviamente as deixas, o guião. Tenho as cenas no meu telemóvel, fazemos sempre umas passagens antes de gravar e basta-me ter o sentido da cena na memória. É uma forma de não me extenuar, apesar de dormir bem. Se decorasse tudo de véspera, armazenava muita informação num espaço que me é necessário para outras coisas”.

Uma gestão que aprendeu a fazer com o tempo, diz ele, como um tecelão que me explicasse os segredos do modo como conduz a linha por entre o algodão e a seda.

“Ah, acabo por me divertir, há sempre uma margem de algum inesperado e como decoro as ideias, aproprio-me do texto de um modo diferente do que se tivesse de dizer palavra por palavra… Leio, apanho a ideia, faço. Claro que as autorias (Artur Ribeiro) da novela me dão essa liberdade. Confiam, sabem que não vou divagar.”

Eis desvendado parte do segredo das peças do puzzle: tempo, uso inteligente da memória, dormir bem, planificação racional da agenda transbordante. A outra parte é aquilo a que ele chama de “paixão”: despe um personagem para dez minutos depois se vestir de director de teatro? Fá-lo com “paixão”. Troca o papel do temível Quian em Bucelas pelo “dr. Alberto Cardoso de Meneses” de Yasmine Reza no Trindade no mesmo dia? O combustível é a tal “paixão” ou “quem corre por gosto não cansa”, acha ele, como se fosse simples.

4. Diogo Infante aprecia tanto o Trindade – dirige-o desde o verão passado – quanto os bons lisboetas: considera-o uma “joia”, é uma “honra ter nas mãos um objecto tão bonito”.

“Nas últimas décadas o Trindade foi essencialmente um palco de acolhimento aberto a diversas manifestações artísticas o que me levou a não se lhe ter reconhecido uma identidade clara. Não por boas ou más razões, eram apenas as suas concretas circunstâncias. O que pretendo hoje – como aliás já vinha ocorrendo um pouco nos últimos dois anos com a direcção de Inês Medeiros – é tornar este teatro um espaço de produção teatral própria: maximizando os recursos financeiros de que disponho, através de parcerias e sinergias, esticando o dinheiro que tenho. Dispomos evidentemente de uma estrutura fixa que será aumentada conforme as necessidades dos espectáculos, com contratações ou sub-contratações”.

Numa palavra, uma mudança de paradigma: em vez de um teatro sem fio condutor, muito eclético e “com muita coisa”, passará a haver, certamente com mais substancia e outra lógica, “uma programação essencialmente teatral”.

“O eixo principal será a produção de espectáculos teatrais de longa duração, assentes num teatro de texto – clássicos, contemporâneos – mas onde se concretize essa coisa de que gosto tanto que é a capacidade do actor em comunicar, chegar ao grande público. Quero fazê-lo através de textos referenciais para que possamos ter um espaço privilegiado na cidade de Lisboa. “

Pausa: “É preciso chamar as coisas pelos nomes: nos últimos oito, dez anos, assistimos a uma tendência para que todas as estruturas com produção própria invistam sobretudo num teatro dito alternativo. Proponho que voltar aos clássicos seja uma alternativa ao teatro alternativo, recuperando alguns valores que para mim são primordiais como actor.  “

Uma espécie de contra-corrente? “Sim. Há espaço de desenvolvimento de determinados textos que acredito que chegam ao público com qualidade e substância. A “Virginia Woolf” que fizemos o ano passado é um excelente exemplo disso mesmo.” (oh se era!)

O “Deus da Carnificina” que amanhã descerá sobre o Trindade, traz consigo uma quantidade sulfúrica de crítica à natureza humana na sua vertente mais violenta:

“Vão cair máscaras e filtros dos ‘padrões da civilização’, irromperá a provocação e o cinismo mais descontrolado. Nada disto é novo, mas é muito curiosa a forma como a Yasmine Reza põe a nu essa natureza a partir de uma situação intencionalmente muito banal. Como seres inteligentes temos de reflectir sobre isto para nos controlarmos e domar essa violência…”

Meio minuto depois, o actor sumia-se na penumbra silenciosa dos bastidores. Quando chegou ao plateau era já o diabólico Quian.

O milagre do teatro em todo o seu esplendor para quem dele é parte.

PS: Já que falo de novelas, coisa menos frequente na minha vida, poderia dizer que o “Jogo” é “duplo” também porque João Catarré, protagonista principal, divide em absoluto o magnetismo do écran com Diogo Infante. Tem trinta e sete anos, muito ofício de televisão, mas agora “acordou” os espectadores com a sua notabilíssima interpretação de “João Guerra”. Avisar não ofende: fixem-lhe o nome. Por mim já lhe encomendei entrevista.