Será preciso alguém morrer, ser dramaticamente atropelado e ficar com sequelas para a vida para se perceber que as novas trotinetes, quando e sempre que usadas na estrada, são um perigo público? Para já são incontáveis as vítimas diárias do desconcerto rodoviário provocado pelo mau uso destes veículos, na medida em que por serem largadas em lugares tão impensáveis como passadeiras de peões ou esquinas de ruas e avenidas cheias de movimento, provocam quedas e tropeços de peões. Estou a pensar em pessoas invisuais ou com graves problemas de visão, mas também em gente com dificuldades de locomoção.
As bengalas com que os cegos varrem o ar, à procura de obstáculos a evitar, não detetam estes veículos quando estão tombados no chão. Há poucos dias assisti, impotente, a uma cena tristíssima quando estava no carro, parada num semáforo: dois cegos subiam, de braço dado, uma rua inclinada tentando perscrutar todas as barreiras físicas para as poderem contornar, mas não se deram conta de que havia uma trotinete no perímetro e esbarraram nela. Primeiro caiu um que, involuntariamente fez cair o outro. Caíram ambos completamente desamparados, um no passeio e o outro projetado para a estrada cheia de carros.
Eu estava mais abaixo, do lado oposto, enfiada numa fila de trânsito. Tal como eu, todos os outros condutores viram a mesma cena e todos ficamos aflitos, mas sem lhes podermos valer. Felizmente juntou-se um grupo de pessoas que os ajudaram a erguer-se, depois de verificarem se estavam feridos. A imagem deste casal de cegos caídos no chão num dia chuvoso, já de si triste e bisonho, ficou dolorosamente gravada na memória de quem assistiu, mas de que nos serve esta memória se o autor moral do acidente não estava lá e, quem sabe, anda por aí a flanar pela cidade noutra trotinete e vai continuar a viver sem saber que provocou aquela desastrosa e aparatosa queda.
Enquanto não mudarem os hábitos de condução e de estacionamento de uma esmagadora maioria de condutores de trotinetes, em Lisboa, é impossível ficar calado. Aliás, é impossível não gritar a pedir que alguém os pare e multe ou, no mínimo, os impeça de guiar na estrada. Aos que têm carta de condução e levam as trotinetes para a estrada deviam ser subtraídos pontos na carta de condução. Acredito, inclusivamente, que uma inibição temporária de guiar poderia fazer muito pela nossa segurança, pois é impossível que a sua forma de conduzir não configure uma contraordenação grave. Em certos casos, observáveis no quotidiano, podemos falar de situações passíveis de levar a um crime rodoviário. Se este casal de cegos tivesse ficado com sequelas graves do acidente ou se um deles tivesse morrido atropelado, estaríamos a falar de crime rodoviário, certo?!
Imagino que a Lime, a startup-mãe destas elegantes e leves peças de duas rodas com patim horizontal e haste vertical, não seja a culpada do mau uso destes veículos, mas a Câmara de Lisboa tem que se responsabilizar pelos abusos e excentricidades com que são guiadas e, depois, deixadas ao deus-dará. Tudo nesta cidade é taxado e regulamentado, menos o raio das trotinetes na estrada. Insisto na questão do uso na estrada, pois não tenho nada contra elas quando são utilizadas fora de estrada, em passeios, jardins ou espaços públicos onde podem circular veículos alternativos, sejam eles triciclos, bicicletas ou trotinetes.
Basta um novo olhar para este antigo objeto para compreender a fragilidade da sua estabilidade. Não é preciso ser um expert para nos darmos conta de que as rodas são demasiado pequenas para não ressaltarem com pedras, carris e rugas na estrada (sobretudo quando também ela é empedrada e cortada por duas escorregadias linhas de elétrico!). Também não é preciso muito para perceber que sem amortecedores, sem proteção de espécie nenhuma e, sobretudo, sem capacidade de acelerar de forma a vencer uma subida ou a fazer uma ultrapassagem subitamente imposta (ou ambas, em simultâneo, dado o caos do trânsito que tantas vezes nos obriga a improvisar e a usar primeiro os travões a fundo, imediatamente seguidos de acelerador a fundo para sair de uma situação de perigo!), dizia eu que sem esta possibilidade de evitar ou sair de situações de risco, a trotinete torna-se o próprio perigo.
O facto de serem elétricas torna-as muito ecológicas e contemporâneas, é certo, mas como não fazem ruído também não se ouvem na confusão de tráfego onde tantos circulam montados em trotinetes. Numa crónica anterior escrevi sobre o tema a partir de uma outra cena arrepiante, passada com uma jovem rapariga na Avenida Alexandre Herculano, sem capacete, por também ter assistido a salvíficas travagens bruscas de carros e autocarros que só se deram conta da sua presença na estrada, quando ela já estava em situação de perigo. Salvaram-lhe a vida sem custos para ninguém, mas sabemos que isso nem sempre é possível.
Tal como já disse, repito e insisto: não quero atropelar nenhum condutor de trotinetes e, muito menos, ser atropelada por desvios de outros condutores que as evitam no último instante; não quero morrer nem matar por causa de uma estúpida trotinete, estupidamente a circular na estrada; não quero nem espero que alguém choque de frente e fique para sempre deitado numa cama ou seja atirado para uma cadeira de rodas por causa de um brinquedo de duas rodinhas rentes ao chão. Não quero que nada disto aconteça, mas sei que fatalmente alguma vai acontecer, dada a multiplicação destes veículos na estrada. Enquanto a PSP não fiscalizar a sua utilização adequada em espaço público e a Câmara Municipal continuar a decretar que o uso de capacete de proteção não é obrigatório, tudo pode acontecer, aliás.
Não sei o que é que o próprio Presidente da Câmara acha de tudo isto, mas tenho a certeza de que é um homem sensível, pai de dois filhos pequenos, com uma família nuclear e alargada. É impossível que Fernando Medina circule na sua cidade sem saber que ele próprio ou qualquer um dos seus filhos e familiares podem vir a ser vítimas dos excessos cometidos por maus condutores. Por condutores levianos, quero dizer, que insistem em levar para a estrada estas trotinetes absurdetes.