Se tudo correr conforme planeado, os norte-americanos votarão no dia 3 de Novembro. Na realidade, quando esse dia chegar muitos já estarão livres do encargo, votarão antes, por correio. Os Republicanos apresentarão o actual presidente – Donald J. Trump – e os Democratas já escolheram o seu paladino, o vice-presidente de Barack Obama. O circo mediático que pauta todas as eleições norte-americanas esquentar-se-á ainda mais nos meses de Setembro e Outubro; a influência externa far-se-á sentir, tanto dum lado como doutro.

O primeiro grande dado desta eleição deu-se nas primárias democratas: Bernie Sanders desiludiu e não conseguiu fazer a Biden o que tinha feito a Hillary Rodham Clinton em 2016. Os quatro anos que passaram debilitaram Sanders, está mais velho, mais cansado, menos arguto, menos convincente. Algo expectável mas desmotivante para os seus fãs. Não obstante o progressismo que portou está longe de estar extinto. A ala mais radical do partido democrata encontrará uma sucessora para Sanders e de momento as melhores colocadas são Elizabeth Warren, Alexandria Ocasio-Cortez e Ilhan Omar. Lembremo-nos também que se Biden ganhou justamente contra Sanders – apesar de a pandemia ter sido uma ajuda preciosa – tal não ocorreu em 2016, quando o DNC facilitou a eleição de Clinton e barrou a estrada ao senador de Vermont.

Os Democratas voltam a apresentar Trump como o candidato do governo russo, no entanto as oscilações são permitidas. Uns dizem que Trump não passa dum mero títere de Putin, outros ficam-se pelos possíveis interesses económicos do seu império na Rússia. Deparamo-nos então com a seguinte questão: Putin prefere Trump a Biden? Sem dúvida. O presidente americano não tem uma postura anti-russa, tão comum para lá do Atlântico. Trump é contra o comunismo e o socialismo, não contra a Rússia. Os desafios geopolíticos que Moscovo cria a Washington são tremendos e a Guerra Fria foi uma bênção para inúmeros americanos que queriam quebrar a Rússia, permitiu-lhes mascarar o seu anti-russismo de anti-comunismo. A implosão da União Soviética criou-lhes um problema semântico, já não podem ocultar as suas posições por detrás da lacra ideológica. Uma das razões principais pelas quais Trump é visto como perigoso pelo establishment é exactamente a sua russofilia. Não sendo um político de profissão não passou pelas aulas cerimoniais que descrevem a Rússia tanto como um outro indecifrável, tanto como um papão omnipresente.

Por sua vez, os Republicanos estão convencidos de que Biden não enfrentará a China. O candidato democrata é descrito como débil e medroso, incapaz de liderar os Estados Unidos num mundo que eles concebem como cada vez mais impetuoso e implacável. A influente apresentadora Laura Ingraham – da Fox News – produziu um segmento no seu programa nomeado Bidenology (Bidenologia). Nele, o vice-presidente de Barack Obama é apresentado como pronto para ceder em qualquer ponto face a Pequim. As frases “a presidência Biden poria a China primeiro” ou “uma vitória de Biden é uma vitória para a China” dão uma linha de ataque que será certamente seguida pelos militantes de base e pela equipa trumpiana. Eis que surge outra questão: Xi prefere Biden a Trump? Certamente. Hoje na América existem duas facções sobre a questão chinesa, aquela que defende que um confronto é inevitável e aquela que sustenta o contrário. Joe Biden faz parte da segunda. Os progressistas são igualmente mais ternos com os chineses do que com os russos, porque enquanto a Rússia profanou o ideal comunista os chineses provaram que o comunismo funciona. Asserção duvidosa bem sei, mas ouvida bastantes vezes. Independentemente do julgamento que cada um possa emitir sobre a experiência chinesa seria errado não mencionar que ainda é gerida pelo partido comunista chinês, e que proporcionou um aumento significativo nas condições de vida de imensos cidadãos.

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O medo da influência externa faz parte do discurso americano desde sempre. O inimigo histórico é a Igreja Católica. Durante o século XVII os colonos norte-americanos foram fortemente influenciados pelas ideias da Reforma Protestante, principalmente de cepa calvinista. Roma era apresentada como a Rameira da Babilónia e os papistas como os seus servos depravados que queriam subjugar a Nova Jerusalém deles à perdição. Este sentimento anti-católico persistirá durante os séculos, com nuances geográficas e temporais, evidentemente. Enquanto ocorre a guerra d’independência o anti-catolicismo é convenientemente abafado pois a França é o aliado primordial; o discurso tende a focar-se no despotismo do rei britânico. Nos nossos dias o impacto migratório de gentes de fala hispana vindas da América Latina reaviva – em partes consideráveis da sociedade norte-americana – o anti-catolicismo.

A oposição entre Biden e Trump não tem nada de fictício. Cada um representa uma América que cada vez menos semelhanças tem com a outra metade da nação. É ousado, mas nós vamos dizê-lo – a última vez que a América esteve tão dividida como está hoje sucumbiu na stasis, na guerra de secessão, na guerra civil. A mitologia federalista – que teve em Althusius o seu mais brilhante pensador e em Calhoun um teórico interessante – mostrava os seus limites. A soberania permanecia chasse gardée de Jean Bodin. Lincoln não respeitou a soberania dos estados que formaram a Confederação porque não lhes outorgava o direito de secessão, porque em última instância não os via como soberanos. A soberania residia num lugar superior, no governo central, acima de cada estado. Tal como a França do século XVII tinha suprido a dissidência dentro dos enclaves secessionistas huguenotes, liderada pela mão de ferro do Cardeal de Richelieu, também a América do século XIX esmagou a vontade dos independentistas sulistas, capitaneada pelo ardor de William Tecumseh Sherman.

As potências rivais dos Estados Unidos, onde se incluem Rússia e China, continuarão a fomentar o descontentamento dos cidadãos norte-americanos. Porém isso não nos deve ocultar que essas discórdias intra-americanas são um problema profundo e nativo, não são necessárias manobras russas nem chinesas para criar um ambiente irrespirável em Washington. Deparamo-nos assim com um dilema acutilante: sendo a liberdade o valor supremo, dá-se liberdade aos indivíduos para seguirem o seu próprio caminho; tanta liberdade que quando olham para os seus concidadãos já nada os une. A fidelidade à bandeira é compreendida de maneiras diferentes, por vezes contraditórias. O tronco comum de valores e referências – essencial para a saúde nacional – é cada vez menos comum.

Trump e Biden nunca devem ter lido Cioran, mas nada melhor do que uma frase sua para compreender aquilo que separa os dois candidatos: “Enquanto uma nação conserva a consciência da sua superioridade, ela é feroz, e respeitada; – quando ela a perde, ela humaniza-se, e deixa de contar.” O candidato republicano – apoiado pelo Kremlin – concorda com o romeno. O candidato democrata – apoiado pelo partido comunista chinês – discorda. Os maiores trunfos de Trump serão os seus discursos politicamente incorrectos e a sua oratória, sem papas na língua. A campanha democrata, quanto a ela, não se fartará de repetir que enquanto quatro anos de Trump são nefastos, oito serão cataclísmicos. Cabe pois então aos americanos ritmar a política mundial e optar pela continuidade ou pelo regresso à era Obama.