Desculpem voltar a Trump. Mas há tanta gente desesperada por inventar um “trumpismo” português, que não é ainda possível deixar o tema. Que se pretende com a importação de Trump? Mais uma vez, trata-se de atingir a direita democrática e liberal, muito temida pelas oligarquias instaladas como eventual agente de reformas. Durante anos, teve de fazer de delegada nacional do “neo-liberalismo selvagem”. Agora, querem impor-lhe a franchising do “trumpismo”. O truque é sempre o mesmo: primeiro, arranja-se um espantalho; depois, identifica-se a direita com esse espantalho; a seguir, acusa-se a esquerda liberal de partilhar as “políticas da direita” — e o cerco está feito.

Para resolver incoerências, os caçadores de trumpistas recorrem a um raciocínio de tipo Monty Python: “Tirando a água potável, as estradas, as pontes, etc., o que é que os romanos alguma vez fizeram por nós?” Neste caso, é assim: tirando a ideia de governo limitado, os mercados livres, os compromissos internacionais, etc., em que é que a direita democrática e liberal se distingue de Trump? De facto, tirando essas coisas todas, em que é que a direita democrática e liberal se distingue da esquerda radical, ou do que quer que seja? É tudo a mesma coisa, quando anulamos, como se fossem pormenores secundários, os princípios fundamentais de uma posição política.

Faz tanto sentido atribuir Trump à direita, pela qual foi candidato, como à esquerda, da qual foi eleitor e financiador até 2008. Trump pretende transcender as divisões políticas. É a marca de água do populismo. Mas se isso faz com que seja possível arrumá-lo na classe de Le Pen, nem por isso Trump deixa de ser um fenómeno especificamente americano. Para o compreender, convém levar a sério o seu slogan “a América em primeiro lugar”. No livro Great again, agora traduzido (Editorial Presença), Trump exibe a cada página a sua paixão pela tradição democrática dos EUA. O que mais o diferencia de outros presidentes é que ele imagina a democracia americana como se pudesse e devesse existir separada do resto do mundo. Pouco lhe interessa que os outros países sejam ou não livres, sejam ou não prósperos. De facto, os EUA já foram como Trump parece sonhar, aliás sob a direcção do Partido Democrata: uma combinação de governo intervencionista, proteccionismo alfandegário, e fronteiras fechadas. Mas a década de 1930 não foi a melhor época dos EUA, nem do mundo.

Posto isto, evitemos a histeria anti-trumpista, feita em grande parte de mentiras, como até o Guardian reconhecia ontem. O governo de Trump está a reverter políticas, não está a liquidar instituições. É um processo sujeito a todos os freios e contrapesos do regime americano, como se viu nas restrições à imigração. É por isso ridículo comparar Trump a Hitler. Hitler não começou por mudar políticas. Começou por mudar o regime, fechar o parlamento, proibir os partidos, sujeitar o país às suas milícias armadas – e nunca teve problemas com juízes. Podemos criticar as políticas de Trump, e o seu estilo e carácter. Mas Trump não é Hitler, e portanto dispensemos histerias de guerra total.

O mundo não está dividido entre Trump e os seus inimigos. Esse é o último argumento dos caçadores de trumpistas: estaríamos a aproximar-nos de um confronto final, em que só se poderia estar de um lado ou do outro. É uma maneira de pensar apocalíptica, típica daqueles para quem o pluralismo político tem de ser ultrapassado através de uma última grande batalha, em que o bem aniquilará o mal. Os democratas liberais — não só à direita, mas à esquerda – precisam de resistir a este delírio de guerra civil, a esta militarização do pensamento, a esta anulação da complexidade, em que seríamos obrigados a tomar, não as posições que correspondem aos nossos valores, mas os postos de combate de uma fantasia niilista.

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