A recente tentativa de golpe de estado na Turquia do passado dia 15 de julho, bem como a reação que se lhe seguiu, sobre a forma de um contragolpe, acompanhado de verdadeira purga punitiva, tem dado lugar a diversas ilações, quer sobre o seu significado político interno, quer sobre o respetivo alcance geoestratégico na região e nas relações com a União Europeia, NATO e Rússia.

Neste texto, irei focar-me brevemente nalgumas dessas ilações, bem como avivar algumas memórias sobre os fundamentos, os motivos mais profundos da situação turca atual, nomeadamente referindo o confronto histórico, a oposição entre o Ocidente e o Oriente, entre o cristianismo e o islão, entre a liberdade ocidental e a submissão oriental.

Vejamos primeiro a circunstância próxima. Para o presidente Erdorgan, vencedor do golpe, a Turquia deverá reforçar o seu pendor nacionalista e conservador, nomeadamente através de uma revisão constitucional que consolide o presidencialismo e ponha fim ao Estado secular instaurado em 1923 por Kemal Ataturk, embora para o conseguir precise dos votos do CHP, Partido Republicano do Povo (recorde-se que a Constituição otomana de 1876 consagrava Sua Majestade, o Sultão, como Supremo Califa e Protetor da Religião Muçulmana).

Como sempre, foi encontrado um bode expiatório, um inimigo externo na pessoa de Fethulah Gülen, antigo parceiro de Erdorgan, entretanto afastado e exilado nos USA. Este é, curiosamente, sempre apresentado enquanto clérigo, como se apenas este defendesse o regresso a uma república islâmica, quando, na verdade, o atual presidente é o líder do partido do poder, o AKP, Partido da Justiça e Desenvolvimento, que defende precisamente o regresso da umma, um modelo de gestão política e religiosa da comunidade. Modelo este que sempre constituiu a base da grande divergência entre o Ocidente cristão e o Oriente muçulmano.

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Ou seja, todo o trajeto político de Erdorgan aponta no sentido do regresso da história, isto é, do regresso do grande império otomano desagregado depois da primeira guerra mundial. Como? Voltando a criar um Estado religioso, muçulmano, sem separação de poderes, onde não exista liberdade de expressão ou garantias de direitos humanos. Um estado absoluto, onde Erdorgan passe de presidente a Sultão da Sublime Porta.

Por isso valerá a pena olhar, ainda que de relance, para a história das relações entre o ocidente e o oriente e perceber em que encruzilhada, ou labirinto, se encontra a Europa de hoje.

Não porque eu seja daqueles que ache que devamos interferir na vida interna da Turquia para tentar alterar o rumo dos acontecimentos. Nesse ponto concordo com Erdorgan. Essa é uma questão turca. Mas porque considero fundamental não esquecer o que nos divide, no passado como agora, e com isso não ter medo de dar o nome às coisas apelando ao discernimento europeu face a um inimigo que nunca desapareceu, antes foi vestindo diferentes vestes: o orientalismo, guerreiro, despótico e inimigo da tradição judaico-greco-cristã.

Recuando agora às raízes. O conflito entre o Ocidente e o Oriente, de que a Al Qaeda ou agora o Estado Islâmico e as suas diversas versões menores contra os cristãos e a civilização ocidental, são apenas as manifestações mais recentes, é tão antigo que pertence à mitologia. Começou com a guerra que é, provavelmente, a mais célebre da história, travada entre os Aqueus, gregos do nordeste do Peloponeso, e um povo quase mítico da Ásia Menor, os troianos, por causa da desonra infligida ao rei espartano Menelau, cuja mulher Helena, fora raptada por um simpático troiano chamado Páris (lembre-se que Roma invoca a sua origem mítica na Ásia com a vinda de Eneias, um troiano, herói da epopeia de Virgílio).

Este momento, provavelmente apenas mítico, em que os troianos saíram derrotados, foi objeto do relato notável de Homero, na Ilíada, celebrando o nascimento de Hélade, e posteriormente da Europa e do seu triunfo sobre a Ásia. A este confronto, sucederam-se as célebres batalhas da Termópilas, Maratona e Salamina que puseram fim às guerras persas e em que, nas palavras do grande historiador Edward Gibbon, a Europa garantiu para sempre a sua liberdade e identidade cultural (como séculos mais tarde Lepanto e Viena). Seguiu-se a conquista da Ásia por Alexandre da Macedónia e pelo Império Romano.

Em Troia, todavia, fora acesa a chama que arderia ao longo dos séculos, pois aos troianos sucederam-se os Persas, aos Persas os Fenícios, aos Fenícios os Partos, aos Partos os Sassânidas, aos Sassânidas os Árabes, e aos Árabes os Turcos Otomanos. Foram, porém, estes últimos até hoje a maior potência do Oriente, cujo império viria a assumir o manto do califado, como símbolo maior do despotismo oriental e a ameaçar a Europa ocidental e a cristandade.

O sultão Mehmed II, designado de comandante dos fiéis e imperador do mundo, ao conquistar Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente (1453) tinha plena consciência desta longa história. E só quase meio milénio mais tarde, em 1918, as tropas britânicas e italianas voltaram a entrar na cidade que o próprio Mehmed II transformara em Istambul. Os aliados permaneceram na cidade apenas cinco anos, mas muitos na época saudaram a ocupação como a segunda queda de Constantinopla, o dia em que o Ocidente pusera fim àquela que Heródoto chamara a inimizade perpétua.

Infelizmente, a grande clivagem ou inimizade entre a Europa cristã e o Oriente muçulmano não terminou aí. É verdade que muitas vezes no acentuar dessa clivagem também esteve a arrogância dos líderes europeus ou a própria intolerância da igreja de Roma, como ocorreu com a saga das cruzadas de má memória, lançadas pelo papa Urbano II, no ano de 1095, e cujo objetivo central terminou, ingloriamente, com a reconquista de Jerusalém pelo grande herói muçulmano, o curdo Saladino.

Acontece que esse cisma, essa divergência ou eterna inimizade, volta hoje a agudizar-se em torno de novos protagonistas, tendo claramente a religião como pano de fundo. Não se ultrapassará, seguramente, com soluções como a que Manuel Vals apresentou no passado domingo, ao propor a criação de centros de reinserção social para islâmicos radicalizados, ajudando assim, a construir o islão em França. Muito menos se ultrapassará esse cisma com a ilusão de que a democracia é compatível com o islão. Neste, ao contrário da versão do cristianismo que acabou por vingar no Ocidente (dai a César o que é de César), a política, a lei e a religião não são separáveis. A comunidade política do islão não se baseia no contrato, no consentimento, mas num decreto divino, na palavra de Deus. É aí que reside a soberania, não no povo como nas nossas democracias demoliberais.

Ora, quando a Europa, na sua pretensa e atual a-religiosidade, pensava poder integrar os turcos otomanos na sua gerigonça institucional, a bem do mercado único e dos interesses alemães, eis que o Sultão regressa de mansinho e volta a alterar as regras do jogo (os alemães foram sempre os grandes aliados dos turcos, como se viu nas grandes guerras e foi bem simbolizado em 1889, aquando da visita do Kaiser Guilherme II a Istambul, Damasco e Jerusalém, onde homenageou os heróis do Islão – ou não fossem eles os bárbaros do norte).

Como terminará mais este episódio do milenar conflito, ainda não sabemos. Mas uma coisa parece todavia óbvia. A tentativa de golpe e a sua sequela em curso tem e terá um efeito alargado em toda a zona, inclusivamente na situação da Síria e do Iraque, com destaque para o futuro do Estado Islâmico. Como terá, certamente, consequências em todo o xadrez do Mediterrâneo, Médio Oriente e Cáucaso. Aliás, não deixa de ser surpreendente e deveras preocupante para a Europa e para o Ocidente em geral, que tenham sido dois velhos inimigos da Turquia, Rússia e Irão, os primeiros a condenar o hipotético golpe e a apoiar a continuidade do regime de Erdorgan.

Em suma, não sei se para defender a Europa e evitar a queda de Roma, será necessário voltar a hastear o estandarte de São Tiago, mas pelo menos seria bom que de ambos os lados do Bósforo, se ouvissem as sábias palavras de São Paulo aos Colossenses (curiosamente, proferidas há dois mil anos junto às margens do rio Lico, na Ásia Menor, atual Turquia) ao descrever o homem novo do evangelho como aquele que, para chegar ao conhecimento, não cessa de ser renovado à imagem do Criador. Aí não há grego nem judeu, circunciso, bárbaro, cita, escravo, livre, mas Cristo, que é tudo e está em todos…

Professor universitário