Que quer a ditadura russa na Ucrânia? Os comentadores nas democracias ocidentais encontraram logo a resposta conveniente: Putin quer sabotar uma democracia, por receio que seja exemplo para a Rússia. Mas porque não perguntar também: que querem as democracias ocidentais?

Parece haver relutância em fazer a pergunta. Talvez por receio de admitir alguma equivalência entre a ditadura russa e o Ocidente. Não há razão para tal receio. Sim, ambos jogam na Ucrânia o mesmo “grande jogo” (como se dizia no século XIX) de alargamento de esferas de influência. Uns ameaçam com tropas, outros com sanções. Mas isso não os torna iguais. Uma Ucrânia integrada nos sistemas de segurança e de comércio ocidentais gozaria de uma liberdade e de uma prosperidade que uma Ucrânia submetida à Rússia nunca obteria. Porque não é isto reconhecido? Não é por medo de validar a caricatura soviética do imperialismo capitalista, a que a extrema-esquerda universitária e mediática se mantém fiel. É por outro motivo: pela presente dificuldade ocidental em reconhecer obrigações para com a democracia no resto do mundo.

Acabada a Guerra Fria, os ocidentais acreditaram por um momento que os muros continuariam a cair por si. Hoje a URSS, amanhã a China. Era só esperar. O 11 de Setembro fê-los pensar que lhes convinha ajudar a história. Não estavam, porém, preparados para as resistências. Dividiram-se, desistiram. Desistiu Obama, desistiu Trump, desistiu Biden. Quase se resolveu, por fim, que ser lúcido era ser indiferente a ditaduras e anarquias no resto do mundo. Quanto ao mais, bastaria aos ocidentais acolher uns refugiados para passearem consciências tranquilas.

A ditadura russa parece destinada a mudar as coisas outra vez. É que as democracias também não são imunes às suas vizinhanças. Putin já demonstrou quão desestabilizador pode ser como vizinho. É uma ilusão pensar que se contentaria com a “finlandização” da Ucrânia. A Rússia de Putin não é a China: tem ambições de potência mundial, mas uma economia mais pequena do que a da Coreia do Sul e uma população decrescente. Só a agressividade lhe pode trazer prestígio e influência. Daí a desinformação, a ciberguerra e a pressão militar. Mas o seu efeito subversivo vai além. Não é por acaso que a extrema-esquerda se agarra às abas do casaco da ditadura nacionalista russa quase com o mesmo fervor com que antes servia o despotismo comunista. À falta de Lenine, é Putin que lhe serve para demonstrar que o futuro não tem de ser democrático. Ditaduras como a de Putin não atormentam apenas os povos a elas sujeitos: corrompem o mundo à sua volta.

Por isso, a liberdade da Ucrânia é a liberdade da Europa, e faz todo o sentido jogar o “grande jogo” para a defender. Não, não estou a recomendar qualquer proselitismo democrático, para o qual faltam no Ocidente competência, perseverança ou consenso. Um célebre cartaz americano da II Guerra Mundial dizia: “this world cannot exist half slave and half free”. Mas é assim que existe. Não se trata de mudar o mundo. Não se trata de agravar conflitos até ao nível do apocalipse. Trata-se apenas de tornar o mundo o mais seguro possível para as democracias. Trata-se apenas de limitar, por meios razoáveis, ditaduras instáveis e agressivas como a ditadura de Putin, e de ajudar aqueles que resistem a essas ditaduras, e muito em especial os que desejam e podem constituir-se em sociedades livres. É o que o Ocidente tem tentado na Ucrânia. Não é uma escolha, é uma necessidade. Não é uma novidade, foi sempre assim. Não é isento de riscos, mas nada é. É improvável que as democracias durem se deixarem cercar-se por ditaduras como a de Putin. A nossa liberdade também começa onde começa a liberdade dos outros.

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