Eu sei, é difícil escolher. Mas, de todas as tradições irritantes da passagem do ano, elejo como maior aquela notícia bombástica dos telejornais segundo a qual “na Austrália, já é ano novo”.

É uma coisa de que nunca ninguém está à espera. Quem diria, tendo em conta a forma esférica da Terra, o movimento de rotação e o de translação e o que aconteceu 4,5 mil milhões de vezes nos últimos 4,5 mil milhões de anos, que isto ia acontecer, outra vez, este ano? Ele há coincidências. Depois, claro, segue-se a inevitável peça com imagens da festa em todas as localidades do mundo em que já é 202_ [preencher o espaço em branco], rumo a nova e retumbante conclusão: que está tudo exactamente igual ao ano passado. Em todo o lado. Aliás, ninguém me tira da cabeça que, volta e meia, usam a mesma peça do ano anterior. O réveillon em Sydney 2019/20, o fogo de artifício em Auckland 2015/2016, as flutes borbulhantes a brindar na praia em Samoa 2005, a fazer de conta que é Tuvalu 2024 (sim. É neste tipo de pensamento que ocupo o 31 de Dezembro, enquanto tento lembrar-me de onde estará o resto das passas do ano passado ou se sempre as atirei à cabeça do último “dj” que passou o “Eeeeehh! Meu Amigo Charlie Brown”).

Mas, se não podes vencê-los, junta-te a eles. Este ano, decidi que quero ver como é o ano novo em pelo menos um país: aquele de que falou o senhor primeiro-ministro na sua última mensagem de Natal.

Que lugar extraordinário. Tudo começa na bandeira: aquele logótipo animado que abriu a comunicação, com o que parece ser um ovo a cavalo em cima de uma toalha de Natal. Depois, o senhor primeiro-ministro placidamente posto diante de uma árvore enfeitada (em cuja base imaginei embrulhos com livros e caixas de vinho de Vítor Escária), a falar de tudo o que conseguimos “juntos”: um país onde o nível de qualificações finalmente se aproxima do europeu, com um modelo económico assente no conhecimento e na inovação e que é o mais bem posicionado para atingir as metas propostas para a descarbonização da economia.

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Não sei o nome do país, mas aceitam-se respostas para esta caixa de comentários. Quero lá ir. Adiro já a outra das modas irritantes do nosso tempo: as listas de coisas que temos “absolutamente de fazer/ver/comer” este ano. Sítios que não pode absolutamente perder em 2024: Samoa, Tuvalu e o país de António Costa. Cheio de qualificações e inovação. Qual Sillicon Valley. Qual Seul. Tóquio curva-se diante da maravilha do Beato.

É que, em Portugal, onde vivo, os alunos tiveram os piores resultados na avaliação PISA desde 2006, o modelo económico assenta no turismo e, se acaso estivermos bem colocados para atingir as metas para a descarbonização da economia, foi, entre outras coisas, porque fechámos as nossas centrais eléctricas a carvão e passámos a importar electricidade a países que a produzem na mesma a partir do carvão (mas aí já entra nas contas deles).

De resto, falamos de um país onde o primeiro período já acabou e milhares de alunos continuam sem professor, se pode esperar até 18 horas nas poucas urgências que continuam abertas, o número de pessoas sem-abrigo aumentou 78% em quatro anos e um quinto da população vive em situação de pobreza (não é em risco de; é na pobreza). Um país em que mais de metade dos jovens qualificados admite emigrar. Um país onde se paga mais impostos do que nunca, mas nada funciona. Um país onde, cinicamente, quem está no poder distribui esmolas por pensionistas e funcionários públicos, porque sabe que, assim, dificilmente algum dia perderá eleições.

Mas não no país de que falou António Costa. Aí, o fogo de artifício nunca é de mais. Quero vê-lo na peça do telejornal, a seguir ao de Kiribati e ao de Camberra. Quase o senti a acontecer ali mesmo, naquele discurso empolgado em que dizia “mas queremos mais!”, como aquelas pessoas que não cozinham particularmente bem, mas insistem para as visitas repetirem. “Só mais um bocadinho do guisado, vá lá! E o esturricadinho? Já repetiste o esturricadinho?”

Não, obrigado, senhor Costa. Estamos bem. Agora, precisamos mesmo é de ir dar uma volta. Apanhar ar. Para “desmoer”. Sabe como é que é? As festas, os excessos, a azia – e, depois, já não vamos para novos – quase 900 anos de idade! Já não engolimos sapos como de antigamente.

Agora por isso: já arranjou programa e pessoal para as comemorações dos 500 anos de Camões? Proponho uma homenagem simbólica simples: no dia 10 de Março, em louvor do nosso maior poeta, tiramos todos, de uma vez, as palas dos olhos.