Depois das eleições brasileiras de 2 Outubro continuamos sem saber quem será o próximo Presidente do Brasil, Lula da Silva ou Jair Bolsonaro. Lula teve mais 6 milhões de votos, mas o bloco da direita que apoia Bolsonaro saiu vitorioso nas eleições para o Congresso, e viu eleitos governadores em estados eleitoralmente importantes. Claramente há muita gente no Brasil que não se revê na velha direita civilizada do PSDB e apoia alternativas mais radicais. Se se mantiver o padrão da história eleitoral do Brasil pós-1988, nunca um candidato presidencial conseguiu inverter na 2ª volta uma desvantagem da 1ª volta. Mas como os erros nas sondagens mostraram, vivemos tempos difíceis de prever. Não restam dúvidas de que o Brasil está mais dividido e mais imprevisível.

Não há eleição como esta

Para muitos apoiantes de Bolsonaro e de Lula esta não é uma eleição como as outras, joga-se o futuro do país. Mais do que escolher um candidato com um bom programa, muitos líderes partidários e eleitores parecem acreditar que se trata de evitar um ditador fascista ou um comunista corrupto. Estamos longe do clima da eleição presidencial de 2002, quando um presidente reformista de centro-direita, Fernando Henrique Cardoso, muito facilitou a passagem de testemunho ao líder histórico do Partido dos Trabalhadores, Lula da Silva, que tinha feito uma viragem ao centro. A polarização extremada faz temer que até a alternância pacífica no governo esteja em risco, com um crescendo de incidentes de violência política e especulação sobre um autogolpe no modelo de Getúlio Vargas em 1937. Quais são as implicações de tudo isto para as relações do Brasil com o resto do Mundo?

O Brasil importa muito

O Brasil está mais ou menos empatado com a Indonésia como terceira maior democracia em número de cidadãos, ultrapassada apenas pela Índia e pelos EUA. E é justo reconhecer que as eleições democráticas brasileiras têm, até ver, decorrido bastante melhor do que em qualquer um desses casos. Mas o futuro da democracia pluralista no Brasil é, também por isto, fundamental para o futuro da liberdade no Mundo. A Freedom House intitula o seu relatório de 2022 de Expansão Global dos Regimes Autoritários. E fá-lo porque a percentagem da população livre, em queda desde 2005, desceu para praticamente metade nos últimos dois anos, ficando-se, em 2021, por 20% do total, com os restantes a serem apenas parcialmente livres – entre os quais indianos e indonésios – ou sujeitos a regimes autoritários. Uma regressão da democracia num país tão populoso como Brasil resultaria numa aceleração desta tendência.

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Em Portugal há natural interesse pelo Brasil como resultado de laços históricos e humanos – cerca de 20 milhões de brasileiros reclamam raízes portuguesas e vivem em Portugal mais de 150.000 brasileiros. Mas a evolução do maior país sul-americano é relevante a nível global e regional. O Brasil é o quinto maior país do mundo em área e o sexto em população, controlando quase metade da América Sul, onde faz fronteira com todos os países, exceto dois. As Forças Armadas brasileiras contam com 360.000 efetivos e em breve poderão vir a ser dotadas de submarinos com propulsão nuclear. O Brasil é membro do G20, que agrupa as maiores economias mundiais, e dos BRICS, um clube de potências emergentes. Por isso o desfecho das eleições brasileiras no final deste mês de Outubro será acompanhada com alguma atenção por líderes de todo o Mundo.

Em termos geoestratégicos a América do Sul perdeu importância relativa depois da abertura do Canal do Suez, em 1869, e do Canal do Panamá, em 1914, que significaram que muita da navegação comercial e militar que se dirige do Oceano Atlântico até ao Índico e ao Pacífico deixou de ter de atravessar o Atlântico Sul. Mas não há regiões ou países irrelevantes no contexto de uma segunda Guerra Fria global, menos ainda países com a dimensão do Brasil. Mais, a crescente procura de alimentos, combustíveis, ou metais raros significam que um país como o Brasil, com abundância desses recursos, ganha importância acrescida.

O que mudará com as eleições

Há razões estruturais para a relevância do Brasil, mas isso não significa que o grau de legitimidade e fiabilidade do Presidente sejam irrelevantes no peso externo do país. Bolsonaro apostou numa política externa muito ideológica que dificultou as relações com os EUA pós-Trump, com a Europa para além de Órban, e, numa fase inicial, com a China comunista. Entretanto, sobretudo depois de 2021, com a nomeação para chefiar o Itamaraty de um diplomata mais convencional, Bolsonaro parece ter dado prioridade aos BRICS, reforçando as ligações com regimes autoritários como a Rússia, que visitou pouco antes da invasão da Ucrânia.

Apesar de toda esta polarização eleitoral, do ponto de vista da evolução da política externa brasileira não é garantido que uma futura vitória de Lula leve a uma mudança radical. Entre 2003-2010 ele ficou conhecido por ter uma política externa ativista, favorável a organizações regionais e a instituições multilaterais. Para a posição do Brasil no Mundo a eleição de Lula provavelmente será melhor. O líder do Partido dos Trabalhadores parece ter, a nível externo, menos anticorpos do que Bolsonaro. Este último paga o preço de levar a ideia de que toda a política é interna ao ponto de tentar transformar a diplomacia numa continuação de guerras ideológicas internas. Mas a situação interna e externa do Brasil não permitirá o regresso a 2002, quando Lula foi eleito pela primeira vez. Um Lula novamente presidente terá de enfrentar uma crise económica séria, uma região menos integrada e um multilateralismo em crise. Num Mundo cada vez mais conflituoso, quer Lula, quer Bolsonaro parecem apostados em manter o máximo de autonomia face aos blocos que se vão esboçando, maximizando negócios e concessões. Mas isso não será fácil, em particular em áreas vitais como a defesa ou a tecnologia de ponta, uma postura de autonomia equidistante será difícil de manter por qualquer país.

Em termos de relações com os EUA e a Europa, Lula poderá conquistar alguma boa vontade por via de uma postura de maior defesa da Amazônia. Mas a recusa em condenar a invasão da Ucrânia ou ter uma postura crítica de Moscovo ou Pequim dificultarão as coisas. Também não é evidente que o PT esteja empenhado na ratificação do acordo comercial entre a UE/Mercosul, um teste importante para uma evolução positiva da relação do Brasil com a Europa – que também conta com alguns opositores interesseiros do lado de cá, nomeadamente em França, que não deixarão de explorar dificuldades no relacionamento com Brasília. De Bolsonaro dificilmente se poderá esperar grandes mudanças. É bem possível, portanto, que as relações entre o Brasil e os EUA e a União Europeia atravessem momentos de tensão nos próximos anos. Esperemos que, pelo menos, a democracia pluralista não esteja em risco no Brasil, isso seria mau para as relações com os países ocidentais, mas seria, sobretudo, péssimo para os brasileiros, a quem cabe – e deve continuar a caber – escolherem livremente quem querem que os lidere na política interna e externa.