O Período Medieval, apesar de ter sido um tempo profundamente rico para aquilo que chamamos “História do Pensamento”, foi considerado pelos modernos como um mero “tempo intermédio”, entre os grandes clássicos e “nós, modernos”. Isto, claro, mais do que denegrir o pensamento medieval, tão rico e profundo, testemunha a arrogância dos “iluminados”. Hoje, somos capazes de ver essa arrogância — mas, infelizmente, ela ainda por cá anda. Quiçá, num futuro distante, paleontólogos e historiadores olhem para aquilo a que chamamos “período contemporâneo” e o consideram “período dos comentadores”, onde cada um tem a sua opinião. Não querendo eu ficar para trás desta moda (temendo que me chamassem antiquado), decidi elaborar também um pequeno comentário. Não se trata de uma obra magnânima — deixo isso a quem tem mais opiniões do que eu —, mas será, pelo menos, um comentário preliminar. Um comentário a quê? A algo actual, sim, tem de ser. Ninguém quer ler comentários a coisas antigas. Ninguém leria, por exemplo, um comentário às raízes bíblicas da Igreja. Mas muitos terão, certamente, interesse num comentário ao estado actual da mesma. Aqui vamos nós.
O estado actual da Igreja, para quem a vê de dentro, é um estado semelhante ao apartheid. Tem-se na boca, pelo menos, as palavras “tradicionalistas” e “modernistas”, “conservadores” e “liberais”. Quem sabe mais do que eu saberá dizer mais do que eu. Eu limitar-me-ei a um comentário preliminar, precisamente sobre o problema destas categorias. Antes de mais, permitam-me deixar algo preto no branco. Um católico que chame o Papa Francisco anti-cristo não é conservador, é estúpido; e um católico que seja a favor do aborto não é liberal, é só pouco inteligente. Parece-me, por vezes, que dividimos o Mar Vermelho entre bons e maus (os bons, claro, como nos filmes, são os que estão do nosso lado) e queremos chamar Mar Azul à outra metade. O conservador quer que todos sejam conservadores – para ele, os liberais não são bem cristãos. Na melhor das hipóteses, o conservador aceitará uma Igreja média, “razoável”, mas nunca uma Igreja liberal. E o liberal, sem grandes surpresas, convicto de que os conservadores não são verdadeiramente cristãos, mas fariseus, aceitará uma Igreja Mediana, não propriamente liberal, mas nada que se assemelhe a uma Igreja conservadora. Isto leva a que, sabemos bem, o conservador feche os olhos ao novo, já não por ser novo, mas por lhe lembrar o liberal; e que o liberal, vice-versa, rasgue as vestes diante do incenso, não porque é velho, nem sequer porque cheira a velho, mas porque cheira a conservador. O paradoxo é que ambos aceitam, como mal menor, uma Igreja Medíocre. Impedido de viver numa Igreja conservadora, o conservador prefere eliminar o liberal a conservar-se; e o liberal escolhe aprisionar os seus irmãos, desde que não se tenha de libertar dos seus preconceitos. É óbvio que alguém virou a questão de pernas para o ar.
É inútil tentar desenvolver o ponto anterior; mas não consigo deixar de reparar que, se o conservador permanecesse firme no seu propósito de conservar o que está salvo, e o liberal na sua intenção de libertar o que ainda está cativo, teríamos uma Igreja mais parecida com Jesus. O tema deste comentário, porém, não é o conservadorismo, nem o liberalismo. O tema deste texto é “o problema das categorias”. E o problema das categorias, avanço desde já, não existe. O problema é dos “falsos categorizadores”. Não há problema em pegar num conceito e metê-lo dentro de uma caixa chamada “conservadorismo”. Pôr coisas em conceitos é algo que, pela nossa própria natureza, não conseguimos deixar de fazer; e não querer pôr conceitos em palavras é um tanto ou quanto idiota. O problema é quando esse conceito já tem nome, como no caso de “laxismo”, e lhe damos um novo nome, como “liberalismo”. E o problema é evidente e simples: o problema é ser mentira; o problema é que liberalismo e laxismo não têm nada a ver. Não há mal nenhum em criar a categoria “conservadorismo”, nem sequer em opô-la a “liberalismo”. O mal está em meter na caixinha do conservadorismo “cegueira obsessiva” e dizer que são a mesma coisa. Cria-se, claro, um anfíbio entre verdade e mentira – verdade porque cegueira obsessiva é o oposto de liberalismo; mentira porque também é o oposto de conservadorismo.
É claro, ou, pelo menos, quero assim crer, que, o mais das vezes, estes falsos categorizadores não o fazem por malícia, mas tão-somente por ignorância. Claro é também que a ignorância, embora não sendo ipso facto um mal moral, é, como a malícia, um mal e, por isso, deve ser erradicado. Não tenho grandes soluções. A única solução que tenho, aliás, é o bom senso. Qual bom senso? O bom senso de saber o significado de uma palavra antes de a usar, sobretudo antes de a usar como uma pedra; e o bom senso de não usar as palavras como pedras. Mas o bom senso parece ser escasso nos nossos dias. Um padre de canções substitui a Primeira Leitura pelo Principezinho, e lá vêm os conservadores dizer que é liberal – não, não é liberal, não libertou ninguém. É só bronco. Aparece um padre de batina e roquete a dizer que os homossexuais vão para o Inferno, e eis que os liberais lhe chamam conservador – isto apesar de “conservar” ser precisamente o que ele não fez quanto à Fé da Igreja. Não é conservador; é parvo.
O que proponho, então, não é que deixemos de chamar as coisas pelo que são, mas precisamente que as chamemos pelo próprio nome. Não vejo problema em chamar hipócrita ao fariseu que se acha melhor do que o publicano; parece-me um abuso chamar-lhe conservador. Dir-me-ão que existem conservadores parvos; eu direi que não é grande novidade. E, claro, também existem liberais hipócritas. O que hoje não parece haver, a julgar pelos insultos que se trocam, é um verdadeiro liberal, ou um verdadeiro conservador.
O que diria um extraterrestre, se visitasse o nosso planeta e soubesse falar português? Veria, antes demais, que a dicotomia liberal-conservador, ou é uma descrição, ou um juízo moral. Caso tomasse a primeira hipótese, estou em crer, chegaria à conclusão que o que se descreve é um mero gosto por incenso e roupas ornamentadas. Caso, por outro lado, abduzisse que, o mais das vezes, é usado com uma conotação moral, talvez deixasse o nosso planeta convicto de não ter encontrado sinais de vida inteligente. “Liberal” e “conservador” não são juízos morais; o único juízo moral que se poderia fazer seria dizer se o liberal é um bom ou mau liberal; se o conservador é um conservador fiel ou infiel. Fora isso, são, pura e simplesmente, descrições, e nem sequer têm nada de incompatível. O que me impede de conservar o depósito da Fé e de libertar os meus irmãos? Acaso já não se pode ser cristão à maneira de Cristo?
O erro está em achar que o conservador se quer conservar dentro de uma carapaça porque o mundo é mau. O que o conservador quer, de facto, é conservar a verdade, porque a verdade faz bem ao mundo. Por outras palavras, o conservador quer conservar a receita da avó, porque sabe que o mundo, com aquele bolo de cenoura, é um lugar melhor. E o liberal, tal e qual, não é aquele que se quer libertar da verdade. Isso seria aprisionar-se. O liberal é aquele que se quer libertar da opressão do pecado — tantas vezes instaurada em costumes e instituições —, tal como o alcoólico, por muito duro que seja o processo, se quer libertar do álcool. E eis a verdade dura de engolir: um conservador verdadeiro é um verdadeiro liberal; e um liberal, se o for de facto, é um conservador dos quatro costados. O liberal é conservador porque, se não aceitar submeter-se ao processo de recuperação, há-de continuar preso nos seus vícios; e o conservador é liberal porque, evidentemente, o único propósito de conservar a receita da avó é chegar a comer o bolo. O propósito e método para a verdadeira libertação que o liberal quer operar está na submissão à verdade que o conservador quer conservar. O propósito e método para uma submissão à verdade que o conservador quer conservar é a verdadeira libertação que o liberal quer operar.
Tenha sido por malícia ou ignorância, não interessa, os falsos categorizadores desviaram o debate do essencial. Há também quem, em reacção, tente eliminar as categorias. Mas não temos escolha quanto ao assunto: como disse, não temos escolha senão pôr as coisas em conceitos; e que atire a primeira pedra quem nunca deu nomes a conceitos. O melhor, então, é usar boas categorias. E as verdadeiras categorias, o verdadeiro liberalismo e o verdadeiro conservadorismo, estão bem onde estão, dizem o que querem dizer. Lembram-nos que a verdade não muda com os anos e recordam-nos que, sem o nosso Libertador, não há conserva que nos valha.
É este o comentário preliminar que me ocorreu oferecer. Tenho a esperança que possa contribuir para um diálogo mais saudável. Permitam-me, então, esboçar aquilo que me parece seguir-se destes traços que lancei: Igreja há só uma; e não é morfa, nem mediana. De razoável, num certo sentido, tem muito pouco! Por outro lado, quando nascermos do Alto, veremos que nada há neste mundo de mais razoável. A Igreja é louca e profética, é carismática e mística, militante e dócil, rebelde e profundamente materna. Tudo isto a Igreja é: sem confusão nem separação — parafraseando Chesterton, é vermelha e branca, mas nunca cor-de-rosa. A Igreja Católica, fundada por Jesus Cristo, é, como Jesus Cristo, plenamente conservadora e totalmente liberal, dogmática até ao tutano e pronta a largar as noventa e nove ovelhas para procurar a que está perdida. Sendo liberal e conservadora, a Igreja não é, nem retrógrada, nem modernista, nem laxista, nem autocentrada. Antes, é aquilo que deve ser, ícone do Deus Verdadeiro, cuja imagem conserva dentro de si e cuja imagem serve nos irmãos que a rodeiam. A Igreja Católica, como em tudo o resto, usa duas categorias, mas não é dualista. Se, infelizmente, não faltam alunos universitários que não sabem sequer conjugar os verbos mais simples, ao menos que não haja comentadores eclesiais que não sabem falar.