1 Numa democracia adulta, como é suposto ser a nossa Democracia com cinquenta anos de idade, o voto é um direito e um dever de cidadania. Por ora, deixemos de lado o dever. Para qualquer cidadão no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos votar é um direito. Mas é um direito que pressupõe o cidadão ser previamente esclarecido das escolhas que lhe são apresentadas de modo a poder decidir sobre o sentido do seu voto com liberdade, com independência e com prévio e cabal conhecimento sobre as opções políticas que lhe são propostas. Só assim o voto pode ser sério e só assim o eleitor se sente estimulado a votar e a não fugir para a abstenção. Não tem sido isso que tem acontecido em Portugal e começa a haver razões para se temer que não aconteça também nas próximas eleições legislativas. É certo que ainda não começou oficialmente a campanha eleitoral mas é inegável que ela já começou na prática desde o dia em que as eleições foram marcadas. E o que é que nós vemos? Vemos alguns partidos entretidos com questões menores ou de mera aparência formal, com trocas de palavras feias quando não de insultos, com a obsessão quanto a acordos pós-eleitorais, que por ora são meramente hipotéticos, com promessas generosas que não aparecem fundamentadas no contexto financeiro e social do País, etc. E para a maior parte da Comunicação Social está a interessar mais a superficialidade e o sensacionalismo do que um esclarecimento substancial e profundo das grandes matérias que a sociedade civil enfrenta em Portugal nestas eleições. No meio de tudo isto, divulgam-se sondagens quanto às eleições cuja seriedade é legítimo por em dúvida, cabendo mesmo perguntar se com elas não se pretende, de um modo geral, manipular e condicionar o voto. Na realidade, se os partidos ainda não divulgaram os seus programas eleitorais e, portanto, ainda não disseram o que se propõem fazer nos próximos quatro anos no Parlamento, e no Governo que dele emanar, como se pode levar a sério sondagens nas quais os inquiridos, para se pronunciarem, tinham que previamente conhecer os programas eleitorais e as propostas dos diversos partidos? E a verdade é que as sondagens têm falhado rotundamente em eleições anteriores. Para só citar exemplos mais recentes, em 2022 nenhuma sondagem previa a maioria absoluta do PS, e em 2021, nas eleições autárquicas em Lisboa, as sondagens, de um modo geral, davam a coligação Novos Tempos entre 8 a 10 por cento atrás do PS, mas ela, todavia, venceu as eleições.
2 A menos de dois meses das eleições já é tempo de todos os partidos que a elas concorrem apresentarem os seus programas eleitorais, isto é, divulgarem, com o pormenor possível, as medidas políticas, legislativas e administrativas que se propõem adotar nos próximos quatro anos, sobretudo nas matérias de maior relevância política, económica e social, assim como pelo menos o rosto das principais personalidades que as vão defender e fazer aprovar no Parlamento e no Governo. Mais do que isso, porque a Assembleia da República terá poderes constituintes no próximo mandato, os partidos, designadamente aqueles sem cuja participação uma revisão constitucional se torna praticamente impossível, isto é, o PS e o PSD, deveriam também submeter já ao eleitorado as grandes linhas da revisão constitucional que querem levar por diante. Uma coisa e outra são essenciais para os eleitores irem votar em 10 de Março e para o fazerem com liberdade, com consciência e com seriedade, tendo a noção exata de como estão a votar, tal como, repetimos, é da essência de uma Democracia consolidada e adulta. Caso contrário, aumentará o afastamento dos cidadãos em relação à Política e aos Políticos, com o que apenas ganharão os populismos.
3 Há áreas em que os eleitores esperam, de um modo especial, que os partidos expliquem o que pretendem fazer se participarem numa maioria parlamentar. Essa obrigação recai de modo especial sobre o PS e a AD porque é sabido que não será possível qualquer maioria parlamentar ou qualquer governo, mesmo minoritário, sem a presença nessa maioria de pelo menos um deles. Mas, por razões de lealdade para com os eleitores, essa obrigação deve ser respeitada por todos os partidos. Vejamos as mais importantes e urgentes dessas matérias:
- Pelas estatísticas de organizações internacionais Portugal tem uma taxa de natalidade das mais baixas da Europa e do Mundo. Ora, perante a constante e acelerada quebra da natalidade, ainda que com anos melhores e outros piores, e para se obviar às muito sérias consequências disso no campo social e financeiro, quais vão ser as medidas que os partidos se propõem adotar para inverter a situação? Eles podem aprender muito nessa matéria com os Estados do Norte da Europa, que, mesmo que sem terem ainda resolvido o problema, atenuaram bastante, nos últimos anos, a diminuição de nascimentos.
- Em face da emigração de tantos quadros qualificados do nosso País e de tantos jovens logo depois de concluírem os seus estudos, o que se propõem os partidos fazer para evitar que essa emigração continue e para se tentar que os que partiram regressem ao País? Ao contrário do que se diz, o problema não é apenas financeiro, é também de culto da meritocracia e de condições de trabalho, os que são muito bons querem que o País lhes reconheça valor e lhes dê condições de emprego estável e perspetivas de carreira compatíveis com esse valor. E que me desculpem os imigrantes, os estudos que já existem sobre a matéria mostram que aqueles que chegam a Portugal não têm, de um modo geral, qualificações comparáveis com as de muitos dos portugueses que emigraram nos últimos anos.
- Muitos dos partidos falam na necessidade de se reformar a Justiça. Mas há duas prevenções a fazer nesta matéria. Primeiro, o Ministério Público e os Tribunais estão a aplicar leis que foram aprovadas pelo Parlamento ou por governos de que fizeram parte muitos dos partidos que agora os criticam. E além disso a reforma da Justiça não deve ser feita em tempo de casos concretos porque isso pode levar à tentação de se politizar, se não de se partidarizar, a Justiça. Que reformas propõem os partidos para a Justiça?
- Perante o descalabro atual do SNS o que se propõem fazer os partidos para assegurarem aos cidadãos portugueses uma assistência minimamente digna em matéria de saúde, como é imposto ao Estado Português pela Constituição e pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia? Concretamente, que medidas concretas pensam os partidos adotar para parar a fuga dos profissionais de saúde para o sector privado e para o estrangeiro? E vai finalmente haver um médico de família para cada português?
- Em matéria de educação, como se vai trazer paz e normalidade ao sector de modo a permitir que os níveis de aproveitamento do nosso ensino básico e secundário garantam aos jovens um futuro profissional decente e que lhes permita aspirar a um emprego qualificado?
- A Segurança Social é um tema que deve preocupar muito os Políticos, tanto quanto ele preocupa os cidadãos. Particularmente sensível é o problema das pensões de reforma. Elas já são baixas à partida pelo que baixá-las sob qualquer pretexto ou não atualizá-las periodicamente seria uma profunda injustiça. Portugal está vinculado à Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, integrada no Tratado de Lisboa. Essa Carta reconhece, no seu artigo 25º, às “pessoas idosas” o “direito a uma existência condigna e independente” . A maioria esmagadora dos nossos idosos não têm uma pensão que lhes permita ter uma “existência condigna” depois de pagarem a renda de casa, uma alimentação adequada, os medicamentos necessários, o seguro privado de saúde (porque o SNS não lhes assegura consultas e tratamentos atempados). Muitos deles têm que arranjar um qualquer emprego já depois de aposentados a fim de poderem sobreviver quando teriam direito ao descanso depois de terem passado uma vida inteira a servir o País na função pública ou na vida privada e de terem descontado nos seus vencimentos para a reforma. Nenhum Governo poderá ignorar este problema nos próximos quatro anos. Alguns partidos já deram a conhecer as suas posições perante este problema nas últimas semanas. Mas é imperioso que eles apresentem propostas bem claras, bem fundamentadas do ponto de vista financeiro e que não pretendam apenas mercadejar o voto dos pensionistas. Os direitos dos cidadãos, neste caso dos pensionistas, não podem estar em leilão.
4 Sobre cada uma destas questões, e doutras que aqui não ficam referidas mas que o leitor sabe quais são, deve a Comunicação Social promover debates temáticos (repete-se: temáticos) entre representantes dos partidos que concorrem às eleições, como se faz em muitos outros Países europeus e nos Estados Unidos durante as campanhas eleitorais. Esses debates terão de ser moderados por especialistas nas respetivas matérias para ser possível ir-se ao fundo das questões. Isso é infelizmente contrariado com o costume de apenas haver debates generalistas entre os dirigentes máximos dos partidos concorrentes. Sabe-se, por experiência, que esses debates generalistas nada adiantam à necessidade de os eleitores ficarem esclarecidos acerca das propostas dos partidos sobre matérias concretas e substantivas. Sublinhe-se que especiais responsabilidades advêm nesta matéria para os meios de Comunicação Social públicos, especialmente para a RTP, no cumprimento por eles das obrigações de serviço público que lhes incumbem.
5 Todavia, os domínios de que nos vamos ocupar aqui mais demoradamente são outros. Tem constituído praticamente um pacto implícito de regime na nossa Democracia, desde a entrada em vigor da Constituição de 1976, a participação sem reservas de Portugal na NATO e a nossa pertença de corpo inteiro à União Europeia, incluindo à União Monetária. Mais do que um pacto implícito entre partidos democráticos isso tem significado a escolha pelo País dos valores da Paz, da Liberdade e da Democracia, que caraterizam o Ocidente e o distinguem de outros espaços geopolíticos. Nesse pacto implícito tem participado, sem hipocrisia, o PS, o PSD e o CDS. Nos próximos anos muito vai ser exigido a Portugal para acompanhar os compromissos que a NATO e a UE vão pedir aos seus Estados membros. Podem o PS e a AD assegurar aos eleitores que as maiorias parlamentares de que venham a fazer parte vão respeitar esses compromissos, sem prejuízo do contributo crítico que naturalmente é reconhecido a todos os Estados membros?
Não faz dúvida de que a guerra da Rússia não é contra a Ucrânia mas é contra todo o Ocidente, nomeadamente contra os Estados europeus que são membros da NATO. É preciso desde já prevenir a intervenção da Rússia em Estados, para já nos que são seus vizinhos, como os três Estados bálticos mais a Polónia e a Finlândia. Todos eles são membros de pleno direito da NATO. Ora, se a Rússia tocar nas fronteiras de qualquer desses Estados eles terão direito à solidariedade militar de todos os outros Estados membros da NATO. Isso resulta, desde logo, de um compromisso que ficou escrito no Pacto do Atlântico, no seu artigo 5º, como direito de legítima defesa coletiva. O problema pode complicar-se se o trumpismo, com ou sem Trump, voltar ao Poder, porque nesse caso a defesa da Europa ficará entregue apenas a ela sem que ela esteja preparada para o efeito. As dificuldades serão ainda maiores se nos governos europeus aumentar o peso de partidos da extrema-direita, que, muitos deles, ainda que nem sempre o admitindo expressamente, são complacentes perante Putin. Não que em matéria de defesa e segurança do Ocidente a extrema-direita e a extrema-esquerda na Europa se distingam, mas é verdade que, em geral, a extrema-esquerda está em manifesta queda ao nível dos Estados membros da NATO ou da União Europeia. Pensando concretamente no nosso País, tudo isso vai obrigar Portugal, nos anos imediatos, ao seguinte: conforme compromisso já assumido pelo nosso Governo no âmbito da NATO, a subir as despesas com a defesa para 2% do nosso PIB anual (há Estados que as vão subir para 3% e 4%); e, no mesmo âmbito, e como tem sido pedido pelos nossos chefes militares, a modernizar as nossas Forças Armadas. É um trabalho para mais do que quatro anos mas que tem de começar de imediato. O que pensam disso os nossos partidos, particularmente o PS e a AD?
Quanto à União Europeia, é preciso perceber os aspetos positivos que se verificaram no progresso da solidariedade no âmbito da integração nos últimos cinco anos, como foram os casos da vacinação contra o Covid, da guerra na Ucrânia e do PRR. Especificamente quanto à guerra na Ucrânia, a solidariedade entre os Estados membros foi até aqui a suficiente: nos campos militar e humanitário e na aplicação de sanções à Rússia a União cumpriu os mínimos, dentro, há que o sublinhar, do que os Tratados da União lhe permitiam ou impunham. É preciso não nos esquecermos de que a União não tem uma política própria de defesa e segurança e que o sistema de aplicação de sanções a terceiros Estados exige a unanimidade dos Estados membros. Podem o PS e a AD garantir que as maiorias parlamentares que virão eventualmente a constituir respeitarão as linhas-mestras da política portuguesa nessas matérias?
Outra questão. A União está a planear levar a cabo um novo alargamento e rever os Tratados até 2030. O próximo alargamento abrangerá exclusivamente Estados de leste, que pertenceram ao Império soviético ou à ex-Jugoslávia. Portugal não pode opor-se ao alargamento, dado que as motivações desse alargamento serão as mesmas que presidiram à entrada de Portugal e da Espanha em 1986 e ao alargamento maciço de 2004-2007, ou seja, consolidar a Democracia nesses Estados, que ainda não se libertaram dos males das ditaduras sob as quais viveram longas décadas. Mas o Estado português deve prevenir-se contra dois grandes riscos para si desse alargamento: a reforma da Política Agrícola Comum (que está prometida para começar em breve) e a saída de Portugal do “Grupo da Coesão”. Os dois fenómenos poderão trazer sérios problemas a Portugal se não forem tomadas a tempo, ou seja, desde já, as devidas precauções, tanto ao nível diplomático como ao nível da política económica e financeira interna. Poderão os eleitores saber antes de 10 de Março qual vai ser a posição de todos os partidos, mas sobretudo do PS e da AD, perante esses muito importantes problemas?
6 O debate das questões relativas à União Europeia e à defesa e segurança da Europa nesta campanha eleitoral terá a vantagem de antecipar o debate que necessariamente teria que haver na campanha para as eleições de Junho para o Parlamento Europeu e que havia o risco de se transformar numa campanha em que se discutissem todos os problemas de pura política interna menos os que verdadeiramente estavam ligadas à Europa, como aconteceu em anteriores eleições europeias, com manifesto prejuízo para a afluência de votantes nessas eleições.
7 Ficam deste modo expostas algumas preocupações mínimas quanto à democraticidade e a genuinidade das eleições do próximo dia 10 de Março. Conhecem-se muitos casos em que noutros Estados os Parlamentos não aprovaram leis e os Governos não tomaram medidas, particularmente em matérias sensíveis, com fundamento na circunstância de essas leis e essas medidas não terem sido previstas nos programas eleitorais dos respetivos partidos e, portanto, também não terem sido inscritas nos programas de governo. Em Democracia o voto não é um cheque em branco dado ao eleito que venceu as eleições, é a aceitação consciente do seu programa e do seu projeto. Para tanto, é necessário que o eleitor saiba e possa ser esclarecido previamente sobre qual é esse programa e esse projeto e que este não fique apenas por generalidades mas assuma compromissos. O contrário viola as regras da Democracia porque deixa o exercício do Poder entregue ao arbítrio do eleito.