Neste artigo vou salientar duas ideias sobre o relatório “Uma década para Portugal” do grupo de trabalho em que participei. A ideia da urgência do reforço do relançamento da economia portuguesa e a ideia de que a competitividade, o crescimento e a sustentabilidade das contas públicas têm de ser abordados de forma diferente da que tem dominado o debate público dos últimos quatro anos.
Foi esse exercício que eu, e outros 11 economistas fizemos nos últimos meses, com muito trabalho de análise, diagnóstico, discussão de medidas e alternativas, estimação do seu impacto e verificação da consistência e rigor dos resultados. Não vou aqui fazer uma apresentação do relatório (o PWP está aqui), nem uma explicação exaustiva das medidas, que não caberia no espaço de um artigo (ver relatório completo).
Porque é tão urgente pôr o país a crescer?
O crescimento é urgente, porque os custos de atrasar o crescimento são muito elevados. Que custos são estes?
Cada mês que adiamos a retoma, são mais 5 ou 10 mil jovens que saem do país. É um problema social e humano. Mas é também um problema da perda do recurso mais importante para o nosso crescimento futuro. Os 300 mil trabalhadores que já saíram do país são uma perda de capital humano brutal que reduz o potencial produtivo do país. Uma machadada no PIB potencial. É urgente estancar e inverter este processo.
O nível de investimento está hoje 30% abaixo dos valores anteriores à crise. O prolongar de um nível de investimento tão baixo durante 4 anos fez com que, pela primeira vez desde a segunda guerra mundial, o stock de capital português diminuísse. Está a diminuir desde 2011. Uma recuperação tímida do investimento privado, como a que se está a verificar (2%), a manter-se, significaria que só daqui a 20 anos se chegaria aos níveis de investimento de 2007, o que implica que durante a próxima década o stock de capital do país estaria continuamente a encolher.
A este quadro podemos juntar o retrocesso que se operou no sistema científico e tecnológico, e o enfraquecimento que se operou nas instituições públicas, que afectou de igual forma as que funcionavam bem e mal, contribuindo com cortes transversais, para diminuir de forma também transversal a qualidade e a operacionalidade dos serviços públicos.
Com menos trabalhadores, menos capital e instituições mais fracas, teremos menos PIB. Este é um quadro claro de uma politica que está a contribuir, a cada dia que passa, para que Portugal tenha menos crescimento potencial, o que piora todas as equações de sustentabilidade da dívida, das contas públicas e da segurança social.
Prolongar a estagnação é um luxo ao qual Portugal não se pode dar, porque para além de manter a agonia no presente, contribui para diminuir o crescimento futuro do país.
É neste duplo sentido que a ambiguidade da situação actual é tão preocupante. Os sinais de retoma que chegaram no último ano, em vez de estarem a ganhar ritmo estão a desacelerar. O ritmo de crescimento, antes de atingir taxas razoáveis, parece estar já a abrandar. O emprego, depois de ter dado sinais de recuperação, está em queda há cinco meses consecutivos (uma diminuição de 50 mil postos de trabalho). Indicadores importantes como o índice de produção industrial, o índice de volume de negócios nos serviços, ou o Indicador coincidente de actividade económica (BdP) apresentam variações negativas desde Setembro do último ano (ver mais aqui).
Uma situação em que o crescimento do PIB hesita, o emprego cai, e as exportações estão a abrandar, é preocupante. Ainda mais preocupante porque tudo isto está a acontecer no contexto em que o cenário externo se tornou mais favorável, com a desvalorização do euro, a baixa do preço do petróleo, a política monetária expansionista do BCE e os sinais de crescimento na Europa a contribuírem para reforçar a retoma.
É por todas as razões que o documento apresentado assume a necessidade de medidas de relançamento e de recuperação do rendimento.
Medidas do lado da oferta e da procura
Hoje é bastante claro que só uma conjugação simultânea de medidas de estímulo à oferta e à procura pode resultar na desejável aceleração da retoma. Mario Draghi já há algum tempo chama à atenção para a necessidade de soluções de estímulo que integrem os dois componentes, a Comissão Europeia e FMI reconhecem hoje o mesmo.
Daí que as medidas com efeito mais imediato de recuperação do rendimento (baixa da TSU para os trabalhadores, reposição de salários na função pública, sobretaxa de IRS), surjam simultaneamente com medidas de apoio à oferta (com uma alteração que apoia mais empresas criadoras de emprego, e beneficia menos as empresas mais lucrativas) e de estímulo ao investimento e de reforço da competitividade das empresas (crédito fiscal, aceleração da execução dos fundos comunitários, reforço do financiamento a instituições de apoio à inovação e internacionalização, formação e colocação de recursos qualificados na área da internacionalização).
As medidas que reflectem a urgência de reter factores em Portugal e de promover a aceleração da retoma, são coerentes com as medidas de médio prazo que se centram na redução da fiscalidade sobre os factores e ao mesmo tempo no aumento da produtividade, pela melhoria dos recursos humanos, da tecnologia e da criação de valor pela inovação e pela melhor inserção das empresas portuguesas nas cadeias internacionais.
O documento apresenta uma estratégia coerente de competitividade e crescimento, porque parte da defesa do reforço da competitividade baseado na criação de valor, no aumento da produtividade e no aumento dos factores de produção (pela qualificação e atracção dos Recursos Humanos, e pelo aumento do investimento), e pela melhoria e valorização dos recursos e instituições que temos, e não de uma estratégia de competitividade exclusivamente assente na diminuição de custos laborais, que podendo ter efeitos marginais na competitividade de curto prazo, não é, nem pode ser uma estratégia de crescimento, pois assenta na necessidade de empobrecimento para manter a competitividade.
Um crescimento inclusivo e assente na criação de valor
A estratégia de competitividade que defendemos assente no aproveitamento do valor que pode ser criado pelo conhecimento, no aumento da inovação, com o reforço das instituições chave de criação de conhecimento e de transferência e valorização da tecnologia, é coerente a estratégia 2020 e o plano Juncker. É necessário que a política nacional reforce as instituições e os mecanismos de coordenação que permitam às empresas portuguesas aproveitar os apoios europeus e os usem para a necessária reestruturação do tecido empresarial português.
Sejamos claros, a indústria do calçado em Portugal não deu a volta por conseguir baixar salários, mas por conseguido evoluir para ter o segundo maior preço mundial. E quem conseguiu isso foram os empresários com visão, mas foram também as associações do sector, o centro tecnológico do calçado (CTCP) e a colaboração que desenvolveu com universidades, no design e engenharia, com a AICEP, o IAPMEI, etc. O mesmo pode ser dito do sector têxtil e vestuário, ou de outros tão diferentes como o sector agrícola, os produtos metálicos, automóvel, software ou do turismo.
As estratégias bem sucedidas partiram de iniciativas empresariais inovadoras, mas também da forma como estas se coordenaram com outras empresas e com instituições públicas relevantes.
No sector agrícola a organização da comercialização fez uma enorme diferença. Nos produtos metálicos a melhoria da tecnologia e certificação mais avançada permitiu o salto que o sector está a dar. No têxtil e vestuário, a incorporação de novos materiais, o design e a melhoria da capacidade de resposta foram cruciais. No software, a maioria das principais empresas que temos saíram directamente da iniciativa de universitários. No caso do Turismo, uma política pública activa de atracção de “low costs” abriu novos mercados. No caso da indústria automóvel a intervenção pública foi essencial para o arranque em Portugal, mas também para o enraizamento da rede de fornecedores, tal como também foi em Espanha, na Coreia e em tantos outros países. E há muitas outras áreas como a da Saúde, a Biotecnologia, a Energia, em que há ainda muitas oportunidades por explorar.
A culpa de todos estes sucessos não pertence certamente a quem nada fez para reforçar as instituições que os alicerçam.
Em todos os casos citados o impulso dado por centros tecnológicos, estratégias de eficiência colectiva, universidades e instituições públicas foi determinante como alavanca para as empresas inovadoras. Em nenhum destes isso envolveu custos para o orçamento muito significativos.
Partimos aqui de uma visão claramente diferente da do actual Governo. Uma visão que em vez de se centrar em reduzir o Estado, se centra em garantir a melhoria da eficiência e eficácia das instituições públicas. Uma visão em que a reforma do Estado tem de ser centrada em colocar o Estado a funcionar melhor.
Melhor Estado, não é maior Estado. Mas nenhum país progrediu assente em instituições públicas fracas e que fazem mal o seu papel. O papel das políticas públicas é essencial na educação, na ciência, no apoio à cultura e à inovação. É em Portugal, como é na Alemanha ou nos EUA.
Colocar o Estado a funcionar melhor, reduzindo encargos e burocracia às empresas e cidadãos, prestando melhores serviços públicos, com mais autonomia e responsabilização, é também um factor de confiança e de atracção de actividade para Portugal.
Por fim. O documento propõe também uma visão diferente das políticas sociais. Também aqui se salienta a urgência das necessidades dos que estão de imediato em situações de carência mais estrema.
Mas as politicas de apoio à pobreza, de redução do abandono escolar, de apoio aos pobres, que trabalhando continuam a estar na pobreza, inserem-se numa visão em que a igualdade de oportunidades é defendida em primeiro lugar como um direito e um principio de que nenhuma crise nos pode fazer prescindir, mas também como a única forma de evitar o desastre que seria perder mais uma geração.
Portugal tem 31% dos menores de 17 anos a crescer em situação de pobreza ou exclusão social. Se não soubermos ter políticas públicas que lhes dêem uma oportunidade, não serão apenas eles a não terem o futuro a que merecem aspirar. Será todo o país a condenar o seu próprio futuro.
O crescimento inclusivo, que mobilize o esforço e as capacidades de todos e não deixe ninguém para trás, será não só mais justo, mas também mais robusto.
Consolidação das contas públicas e estabilização do endividamento
O documento apresentado assume um compromisso claro com uma consolidação que garante a redução do défice e permite iniciar uma trajectória descendente do rácio de endividamento durante a próxima legislatura de forma sustentada para que continue durante toda a década. O equilíbrio das contas públicas e a redução do endividamento são objectivos assumidos como uma prioridade nacional, e uma prioridade assumida por todos os elementos do grupo, independentemente dos condicionalismos externos.
O assumir deste compromisso não significa uma continuidade face à política de austeridade dos últimos anos. Nos últimos quatro anos, o actual Governo, seguindo a tese da austeridade expansionista, adoptou políticas de antecipação e reforço da intensidade da austeridade, indo mais longe do que os compromissos internacionais exigiam, com medidas pro-cíclicas, que acentuaram a recessão e os sacrifícios exigidos aos portugueses, e ao mesmo tempo, pela retracção de actividade económica que criaram, tiveram pouca eficácia na redução dos desequilíbrios do Estado.
A consolidação orçamental deverá ser prosseguida num quadro de médio e longo prazo, com políticas que criem espaço para que o crescimento económico, e não em que a privação de rendimento seja o principal factor de melhoria das contas públicas.
Propomos uma clara ruptura com a estratégia dos últimos três anos, defendendo que a consolidação deverá ser prosseguida:
- Respeitando direitos e a constituição e garantindo os apoios sociais essenciais;
- Com uma moderação da intensidade, que permita uma consolidação baseada no crescimento económico;
- Num quadro que garanta estabilidade, recusando medidas pro-cíclicas e alterações constantes para corrigir desvios do défice ao longo do ano;
- Garantindo autonomia às instituições públicas, para que de forma descentralizada se possam encontrar as soluções mais eficientes promovendo uma melhor utilização dos recursos e melhorias da eficácia dos serviços e das instituições públicas;
Num contexto, em que o respeito pelos compromissos internacionais, deve ser encarado em conjunto com uma negociação que saliente a necessidade de evolução do quadro europeu, num sentido que está já hoje a acontecer, de maior flexibilidade e o necessário ajustamento à realidade das balizas em que se gerem esses compromissos.
O documento uma década para Portugal assume a responsabilidade orçamental e a garantia de saída do procedimento de défices excessivos. Este documento inclui medidas de aumento da receita (como a alteração da trajectória prevista para o IRC, a introdução do imposto sucessório para heranças superiores a um milhão de euros, ou a manutenção da receita do IMT), assume também moderação nas medidas de reposição do rendimento (a sobretaxa e a reposição de salários são feitas ao longo de dois anos, a descida da TSU em três) e medidas de melhoria da eficiência e controle da despesa da administração pública (como a criação de centros de competências, e uma evolução exigente de todos os principais factores de custo).
Este foi um documento que exigiu muito trabalho e reflexão. O único milagre foi o de conseguir o consenso de 11 economistas. Apresenta propostas coerentes, fundamentadas numa discussão aberta, aprofundada e rigorosa, feita ao longo de vários meses, e de muito trabalho e muitas horas de leituras, análise de números e reuniões, para além de mais de 10 mil quilómetros de Alfa pendular, e muitos dias a sair de Braga às 6 da manhã para chegar às 11 da noite. Não é um documento sagrado, com verdades incontestáveis. Apresenta escolhas e desenha uma alternativa. É hoje um documento aberto ao escrutínio e a discussão. É isso que aqui estamos a fazer.
Economista, Professor da Universidade do Minho