Nick Cave e a sua banda de sempre, os The Bad Seeds, lançaram o álbum “Wild God” no passado dia 30 de Agosto. Lisboa espera-os para um concerto na Altice Arena, dia 27 de Outubro, quase à porta do dia dos mortos (ou de todos os santos), e talvez não seja por acaso. Há uns tempos, uma pessoa que não era fã de Nick Cave e que o estava a ouvir pela primeira vez disse-me assim: “Ele canta com sofrimento”. Eu acrescentaria “…e não o esconde nem o finge”.

Nick Cave representa sem vergonha e com verdade um sofrimento do qual tentamos fugir. Talvez seja um dos últimos que não o esconde. Numa sociedade onde estamos mais habituados às febres de Taylor Swift do que às de Nick Cave, talvez seja interessante explorar a forma como Nick Cave nos consegue deixar enamorados pelo sofrimento e pela dor. Muitos artistas, como é o caso de Taylor Swift, penso que cantam sobre “o sofrimento glamoroso”, aquele tipo de sofrimento rentável e que se veste de purpurinas.

“Wild God” é a canção que dá nome ao álbum e tem um verso delicioso sobre este Deus selvagem que ninguém sabe bem quem é. Será selvagem porque ele próprio está perdido e confuso ou porque quem o está são os seus seguidores? O verso diz assim “It was rape and pillage in the retirement village/ But in his mind he was a man of great virtue and courage”. É comicamente negra esta imagem de um Deus que se considera um Homem de grande virtude e coragem enquanto olha à sua volta e vê uma aldeia destruída e consumida por desgraças e violações. Não importa se foi esta a imagem que Nick Cave imaginou, o que importa é que haja canções que ainda nos façam imaginar. Nos últimos versos, Deus anda pelo mundo a esvoaçar, vai à China, vai aos EUA, vai à Rússia, vai a África. Fez-me lembrar uma passagem do stand up “Armageddon”, disponível na Netflix, do humorista Ricky Gervais, assumidamente ateu, que diz “para mim, rezar é um conceito estranho”. Gervais brinca com a ideia de um Deus confuso e que, lá de cima, avalia os melhores pedidos, ou com base na sua preferência ou com base numa democracia. O humorista afirma que se for uma decisão democrática, a China, se se unir, terá qualquer pedido realizado, visto que são mais de mil milhões de pessoas.

A ideia de um Deus selvagem dá pano para mangas, porque na verdade talvez sejam os humanos aqueles que estão cada vez mais confusos, selvagens, perdidos. Deus é apenas uma marioneta, é aquilo que os Homens decidirem fazer dele, e cada Homem, cada nação, utiliza-o com o melhor proveito possível. Talvez seja a ideia de Deus que seja selvagem. Deus é um vício humano, como o tabaco ou o álcool, ao ponto de ser uma boa desculpa até para matar.

Numa entrevista ao Expresso, Nick Cave revela que o álbum talvez nem seja sobre Deus quando diz: “É sobre algo em que acredito piamente (…) é o facto de não entendermos que há muito para amar neste mundo. Tudo o que nos dizem e que sentimos é que o mundo é um sítio para odiar, para desprezar, e que nós, seres humanos, não somos capazes de fazer nada de bom, nada de valor, que só estragamos coisas e magoamos e oprimimos pessoas. Talvez em parte seja verdade, mas eu sinto que temos de estar atentos ao facto de o mundo e os seus seres poderem ser extraordinariamente belos.”

Talvez seja de facto selvagem demais até para a nossa imaginação imaginar que criámos um mundo onde amamos mais Deus do que os nossos “acompanhantes terrestres”, mas a verdade é que muito do que se passa no mundo reflete isso mesmo. Deus é uma personagem confortável e politicamente correcta para representar a supremacia dos povos. É por isso que desde sempre se mata em nome de Deuses diferentes. Lá no fundo teremos a noção de que são iguais? Deus representa a sede dos Homens pelo poder, pelo poder de impingirem as mesmas ideias, as mesmas crenças aos outros. Deus é uma metáfora para a guerra, para o dinheiro e para a política. É através dele que tantas vezes, tantos povos, querem acreditar que são os escolhidos. Que venham mais álbuns que nos fazem pensar e sofrer.

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