Chegou elegantemente vestida de preto, sem pretensões e sem o desejo de fingir ser outra pessoa. Até cantou, com a pureza de uma criança adulta que se redescobre, “I’m so lucky to be me”, canção escrita pelo produtor, compositor, saxofonista, amigo, “pelo meu marido”, assume Stacey Kent, por fim.

Acompanhada por Kazuo Ishiguro e por Jim Tomlinson, Stacey diz serem todos amigos. E são. O solo de cada um é um momento de orgulho para os três. Primeiro, o piano ouve-se sozinho e Stacey e Jim encostam-se à parte escura do palco, deixam o amigo brilhar e embalar o público, como se o espetáculo fosse só dele. Mais tarde, é Jim Tomlinson que faz soar o seu saxofone mágico enquanto os pés de Stacey Kent se afastam lentamente, com a leveza de uma poeira quente, para trás da cortina. Pouco depois, o seu cabelo curto, de um ruivo acetinado, ressurge alumiado por uma lanterna, mas Stacey mantém-se no resguardo possante do piano de cauda. Não há brilho que não chegue e sobre para os três, porque todos são caminhantes antigos, ombros amigos que não lutam pelo cobiçado espaço iluminado. Escondem-se na sombra e ouvem-se uns aos outros como nem, talvez, o público saiba fazer.

Tom Jobim não saltou do túmulo, mas há de ter dançado nele, sambado com o seu violão. Eu, você, nós dois. Houve, sem dúvida, momentos em que Stacey e Jim foram um só, embora acompanhados pelo amigo Ishiguro que, nesses instantes, se transformava num sopro de vento ritmado, que não ofuscava palavra que saísse da boca do casal. “Trains and boats and planes” foi cantada a duas vozes, numa simbiose perfeita de marido e mulher que continuam a ser dois namorados e, mais do que tudo, amigos. Juntos já devem ter apanhado mais aviões do que a maioria das pessoas sentadas na plateia, mas não houve, certamente, avião que os levasse para longe um do outro.

O desenho de luz, simples e despretensioso, como todas as melodias da noite, só intensificou o poder da música e da palavra. Nos tons aveludados de vermelho e azul, o romantismo e a tragicidade das palavras fizeram-se mais altas. Foi uma noite de sentimentos, não entre músicos profissionais, que o são, mas entre humanos.

Stacey fala português como uma estrangeira apaixonada por Lisboa, e não o esconde. “Obrigadíssima, é uma delícia!” Mas não podemos dar apenas a Stacey Kent o estatuto de estrangeira, quando a forma como os seus lábios se apropriam da língua portuguesa soa como um beijo. Ela canta a dor, ela só sabe cantar a dor e o amor. E, embalada, pelas Águas de Março, Stacey Kent e os seus companheiros de vida encheram de primavera esta noite de maio.

Havia quem abanasse leques trazidos de casa e pulseiras tilintantes em cada braço, mas Stacey Kent só nos queria nus, despidos na alma, a ouvir cada nota transformada em poema. O marido escreveu, e ela agora canta e diz “choose me from a crowd”. Esta multidão escolheu ouvir Stacey Kent que, logo no soar dos ponteiros das 21h10, prometeu fazer-nos sonhar. Quem não o fez, não terá sido por falta de embalo.

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