Que vamos ser todos infetados por esta ou outra variante, Ómicron, parece não haver dúvidas.
Que vamos todos sofrer ainda mais um pouco (ou muito?) até que outra e outra variante surjam cada vez mais fracas, parece não haver dúvidas.
Que vamos ter que ouvir entrar-nos pelos ouvidos e pelos olhos, ad nauseam, desinformação sobre SARS-COV2, parece também não haver dúvidas.
Que vamos ter de deixar passar telejornais e telejornais para chegarmos a uma notícia normal, parece também não haver dúvidas.
Que vamos ter que conviver com reis, presidentes, primeiros-ministros ou governantes ou as atrizes e os atores portugueses e estrangeiros infetados, como se tal fosse notícia, parece também não haver dúvidas.
Que vamos ter um número de notáveis que morrem todos os dias, não se sabe se de SARS COV2 ou do que seja, disso parece também não haver dúvidas.
Começo a ter dúvidas, de resto, de que mude alguma coisa quanto ao conteúdo dos blogs, informações, notícias, televisões, rádios, podcasts, fotografias e sabe-se lá que mais no que tem preenchido e poluído as cabeças de todos.
Começo a ter dúvidas de que possamos voltar a ter conversas normais sem metermos um vírus pelo meio.
Começo a ter dúvidas de que a curiosidade intelectual por assuntos transformacionais, de novos modelos de negócio às formas de crescimento da economia, se possa verdadeiramente expandir sem ser afetada por uma pandemia de raciocínios.
Começo a ter dúvidas de que alguém consiga pensar e falar com profundidade de algum assunto que não meta um SARS COV2 pelo meio.
Começo, por outro lado, a ter a certeza de que qualquer que seja o canal televisivo é seu propósito, à força, tornar cada português um profundo conhecedor do número de novos infetados, do número de internados e do número de internados em UCI. Aliás, desconfio que pelo número de vezes que se repetem os números e as horas e datas das reuniões de peritos e do Infarmed querem mesmo que todos decoremos toda esta verborreia como se fosse a tabuada.
Entretanto, desconfio que as novas crianças não sabem mesmo a tabuada.
Desconfio que os novos estudantes comecem a dar erros em abundância.
Desconfio que a preguiça se comece a instalar transversalmente, nas escolas como nas empresas.
Desconfio que a ignorância que alastra pelo país, pelos países, à custa desta pandemia vai trazer-nos uma fatura cara.
Desconfio que a aprendizagem de boas coisas, a prática de experiências e convivência com amigos, as partilhas descontraídas de jantares e conversas edificantes, os cinemas ou os simples copos e conversas de fim de semana tenham um tal nível de comprometimento para com o vírus que ninguém se sinta verdadeiramente confortável.
Desconfio que as famílias estão a pagar caro esta pandemia. Desconfio que muitas empresas, mesmo as que estão a conseguir contornar esta pandemia, irão pagar caro a impreparação para novos mundos no pós-pandemia.
Desconfio que o desinvestimento em formação vai trazer problemas agravados no futuro e mesmo na capacidade de fazer face à resolução de problemas concretos.
Mas, pior que tudo, mudámos o ano e não temos, ninguém tem, o firme propósito de procurar evitar conversas sobre vírus, números, óbitos, reuniões de peritos, mutações, máscaras e todos esses assuntos edificantes.
Quem trava as TVs? Quem trava as rádios? Ninguém. Mas podemos travar, nas nossas conversas, os vírus e assuntos quejandos. Vamos jogar ao jogo das palavras pagas como propósito de novo ano? Por cada vez que dissermos vírus – ou algo relacionado – temos de pagar um euro a quem o dissermos.
Porque os outros precisam de dinheiro. E porque o país precisa muito de contenção verbal. E até porque é já a contar que, no final do mês, vamos ter eleições legislativas fundamentais para Portugal e o futuro de todos nós. Atenção: pagas um euro por cada vez que disseres a palavra vírus (ou falares de assunto que o inclua)!