Em Portugal, a gestão da administração pública não depende das opções deste ou daquele governo – é notável como, independentemente do que digam antes, os responsáveis acabam a tomar decisões semelhantes nesta matéria – é, essencialmente, uma questão de cultura institucional de respeito pelas regras e pelas pessoas comuns.

O que se passa no recrutamento e selecção para cargos de direcção superior (para usar a terminologia oficial, a mesma que chama procedimentos concursais aos concursos, vá-se lá saber porquê) é exemplar.

Comecemos pela beleza da lei, e depois vejamos o que acontece com a sua aplicação.

“1 – Os cargos dirigentes podem ser exercidos em regime de substituição nos casos de ausência ou impedimento do respectivo titular quando se preveja que estes condicionalismos persistam por mais de 60 dias ou em caso de vacatura do lugar. (…)
3 – A substituição cessa na data em que o titular retome funções ou passados 60 dias sobre a data da vacatura do lugar, salvo se estiver em curso procedimento tendente à nomeação de novo titular.”
(artº 27º da Lei 2/ 2004, de 15 de Janeiro).

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Qualquer pessoa normal que leia estas duas normas compreende que é preciso que haja um sistema de substituição urgente e excepcional, e que essa substituição não pode prolongar-se por mais de sessenta dias, embora com alguma margem para um eventual atraso no concurso para o lugar.

Isso seria demasiado linear para a gestão da administração pública, o que acontece é que alguém se lembrou que não pode haver uma situação de vazio na ocupação do lugar e, portanto, os seis meses só acabam quando alguém decidir nomear outra pessoa, não havendo qualquer sanção para quem não faça essa nomeação.

Acresce que não há prazo para acabar um concurso, por exemplo, os concursos para os lugares de direcção superior do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (que usarei como exemplo neste artigo por conhecer bem, até por ter participado em dois desses concursos) foram pedidos à CRESAP em 22 de Novembro de 2021 e abertos pela CRESAP um ano e meio depois, em Maio de 2023.

Como o facto de estar em substituição não implica restringir os actos de gestão à gestão corrente, na prática permite usar como regra a excepção que sempre tem de existir.

O resultado prático, amplamente explorado pelos governos de todos os partidos, mas com especial destaque para os governos de António Costa, é que se pode nomear, por livre escolha, qualquer pessoa para qualquer lugar e deixá-la ficar nesse lugar anos a fio, ao fim dos quais, mesmo não tendo qualquer curriculum prévio para o lugar a ocupar, fica em clara vantagem em futuros concursos para esse lugar.

Agora vejamos um aspecto mais curioso da lei, que ilustra ainda melhor a cultura institucional vigente.

“1 – O procedimento concursal é obrigatoriamente publicitado … havendo sempre lugar à realização de avaliação curricular e entrevista de avaliação …. (…)
8 – O júri … elabora a proposta de designação indicando três candidatos, ordenados por ordem alfabética e acompanhados dos fundamentos da escolha de cada um deles, e apresenta-a ao membro do Governo ….
9 – Na situação de procedimento concursal em que não haja um número suficiente de candidatos para os efeitos do número anterior … deve a Comissão proceder à repetição de aviso de abertura … e, verificando-se o mesmo resultado, pode o membro do Governo … proceder a recrutamento por escolha…”
(art.º 19º da Lei 2/ 2004 de 15 de Janeiro).

Resumindo, há um grande concurso, cheio de garantias e avaliações dos candidatos, que deve produzir três nomes para que o membro do governo escolha um deles, mas se nesse concurso se verificar que há apenas um ou dois concorrentes que servem, o membro do governo fica completamente livre para escolher quem quiser para um lugar para o qual o escolhido pode nem ter demonstrado o interesse mínimo para se candidatar quando podia.

O que faria qualquer governo com um mínimo de cultura institucional de respeito pelas pessoas, pelas regras e pelas razões pelas quais as regras existem (neste caso, a garantia de independência e mérito dos dirigentes da administração pública)?

Para mim, mas parece que só é óbvio para mim, o normal seria que todo o trabalho de avaliação anterior da CRESAP, e o empenho dos concorrentes, fosse tido em atenção, havendo troca de informação entre a CRESAP e os membros do governo sobre os resultados do concurso, em especial havendo uma ou duas pessoas que tivessem qualidade para estar na tal lista de três pessoas que era suposto o concurso ter produzido.

Aparentemente, a lei, e toda a gente, acha normal deitar todo o trabalho do concurso para o lixo, escolhendo outra pessoa qualquer para preencher o lugar, que pode nem ter querido concorrer e que não vai ser avaliada com a mesma profundidade.

Não admira que cada vez menos gente concorra e que os funcionários públicos tenham cada vez menos confiança nas suas chefias e, muito pior, nas garantias de aplicação da lei, quer na sua letra, quer no seu espírito.

E isto, esta descrença, este desinteresse, a clara consciência da manipulação da administração em função dos interesses políticos de partidos e sindicatos, é uma “chuva dissolvente” que se vai abatendo sobre a capacidade de a administração pública defender o bem comum e a vontade dos funcionários se empenharem nisso.

Pelo meio, o jornalismo vai escrevendo umas coisas sobre nomeações de base partidária e ninharias que tais, sem se dar conta que esse é um sintoma, não é a doença.