O que era grave, Cândido, era se ninguém tivesse ido votar. Se as pessoas se tivessem fartado de eleições de dois em dois anos e de governos incapazes de cumprir mandatos. Isso é que era grave. Se a abstenção continuasse a crescer, o descrédito das pessoas nas instituições a aumentar. Se, apesar de todas as queixas, os resultados tivessem sido mais ou menos os mesmos de sempre, tirando a pouca vontade aos poucos que ainda lá fossem de o voltar a fazer. O que era grave era se tudo fosse permitido aos mesmos partidos de sempre e os eleitores não os castigassem por isso. Se concluíssemos, agora com certeza absoluta, que bastava ir aumentando os pensionistas para ter na mão o segredo para a hegemonia eterna. O que era grave era se a sociedade já não fosse capaz de gerar novos partidos, ou que já não acreditasse em partidos. O que era grave era se já tivéssemos todos emigrado, física ou mentalmente, para longe daqui.
É preciso reconhecer, Cândido, que continuamos a viver no melhor dos mundos possíveis. Onde, após quase meio século de democracia, se bate o recorde do número de votantes, a abstenção desce para valores de há 30 anos, os vencidos aceitam, civilizadamente, a derrota, mesmo quando ela se deu por tão surpreendentemente pouco. O melhor dos mundos possíveis onde, finalmente, começa a acontecer a consolidação do voto antecipado e aceitação de um facto tão simples como que as pessoas se movem. O melhor dos mundos possíveis onde algo estaria errado se tudo continuasse igual a 1976, o Partido Comunista a controlar toda a contestação, as redes sociais a não terem importância alguma.
Não vês, Cândido, o delicioso sentido de humor com que a suprema harmonia continua a operar? Que o vencedor foi aquele que merecia vencer, o que fez a campanha mais sólida, mais sóbria, mais estruturada, a que soube posicionar-se ao centro e ser o centro da discussão, estancar o perigo de afastar os moderados e só depois tentar ir buscar os descontentes; fazer uma campanha pela positiva e não pela crítica, em crescendo, trazendo para ela todos os antigos líderes como há muito não se via, e manter o sorriso, mesmo quando os ameaçavam transformar no incrível Hulk? Mas que, ao longo de meses e meses de matemática, contas, sondagens, estudos, inquéritos, análises, debates, comentários e comentários aos comentários, ninguém tivesse contado com algo tão humano como o golpe de vista? Notado que, uma simples letra poderia deitar tudo a perder? Que o vencedor das eleições perdeu 90 mil votos, 1% dos ditos e três deputados por “n” razões? Que, depois de todo o trabalho avisado de consultores e marqueteiros e num cenário de tão precária vantagem, tudo poderia ter ido por água abaixo por causa de um nome?
O que há num nome? Um nome que a prudência excessiva que outros actores ainda bem vivos não tiveram no final dos anos 90, por ocasião de outra ressurreição da marca, faria obrigar à inclusão de um partido que tinha representado 260 – duzentos e sessenta – votos nas eleições anteriores? E a companhia de um parceiro de coligação errado e errante, que, legitimamente se sente no direito a ser quem é porque, afinal, o convidaram para a festa, mas que representa 260 – não sei se leram bem ali acima: duzentos e sessenta – votos? E que com isto se ofereceu um flanco fácil à crítica, tornou quase impossível o entendimento com, pelo menos, mais um partido com assento parlamentar e que, pelas declarações que já fez depois das eleições, continua a ser, apenas e obviamente, um acidente à espera de acontecer?
O que era grave, Cândido, era se não tivéssemos ouvido o alerta. Se partidos, governantes e instituições, simplesmente, o desprezassem, em vez de tentar compreender o descontentamento, o fim da identificação entre tanto eleitorado e os partidos de poder tradicionais, se a Justiça não compreendesse o seu papel, e a Imprensa; se todos, enquanto sociedade, continuássemos a tratar como erro ou caricatura, depois de 10 de Março, o voto que reuniu tanta gente que tem, em tantos casos, tão pouco a ver uma como a outra. Ou tem dúvidas de que, entre os que votaram assim, se contam alguns dos que, um dia, também “fizeram Abril”?
A maçada da realidade é mais complexa do que parece. Mas ouvimos o alerta, não ouvimos? E vamos trabalhar para lhe responder? A democracia não está em perigo, Cândido. Ainda. Não quando 6,1 milhões de pessoas em 9,2 inscritas vão votar. Mas toma atenção ao número 48. E aos idos de Março. E, sobretudo, ao que vem por aí.
Agora, deixa-me ir tratar do jardim. Devemos cuidar do nosso jardim.