A maioria das pessoas, na qual me integro, não é historiadora, nem especialista em geopolítica ou economista, mas procura entender as questões que esta guerra põe para além da resposta intensamente emocional que a invasão da Ucrânia suscita, e que é inevitável: assistimos à guerra em directo, somos testemunhas do sofrimento, do êxodo, da morte.

A mais extraordinária vantagem dos regimes democráticos é a liberdade. A liberdade da diferença. Religiosa. Étnica. Sexual. Política. Entre as muitas diferenças possíveis a que a liberdade concede a existência, está a diferença de opinião. Poder diferir da opinião oficial de um governo. Ou da dos media dominantes, neste ou naquele assunto, conforme as suas agendas particulares. Ou do nosso melhor amigo. Ou do patrão. Porque não estamos sob uma portentosa pata que nos homogeneíze o pensamento, a opinião e a expressão.

Uma parte dos políticos, dos analistas, da imprensa, e não apenas em Portugal, assaca à NATO a responsabilidade maior na invasão da Ucrânia pela Rússia. Repito: na invasão da Ucrânia pela Rússia. É uma justificação tão perversa como, «ah, mas ela estava de mini-saia, estava a pedi-las». A mini-saia, neste caso, sabemos qual é: desde 2008 que, com o patrocínio dos Estados Unidos, há a intenção de trazer a Ucrânia para a União Europeia e para a NATO.

Em 2004, a Ucrânia escolheu identificar-se com os valores europeus e das democracias ocidentais. Depois, viveu anos conturbados, mas reforçou essa escolha com a revolução de 2014, a Revolução da Dignidade, quando o seu presidente fantoche russo foi deposto. Como resposta a este esforço de democratização e aproximação ao ocidente, Putin anexou a Crimeia e subsidiou a guerra civil a leste, no Donbass. A NATO, por sua vez, respondeu com ainda maior proximidade à Ucrânia, quer através da formação militar quer em armamento. A Rússia exigiu, então, a garantia constitucional de que a Ucrânia jamais integraria a NATO. Esta garantia pretendida foi-lhe negada. A 24 de Fevereiro a Rússia invadiu a Ucrânia.

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Não, a Ucrânia não estava mesmo a pedi-las. Uma nação soberana tem, ou não tem, liberdade para escolher democratizar-se? Para escolher os seus aliados e instituições a integrar? Ou a liberdade está condicionada pelas fronteiras? Vamos descer a bainha da saia só porque Putin percebe a presença da NATO, no leste, como uma ameaça? Uma instituição de defesa militar de um conjunto de países democráticos deve agir em função da percepção que dela tem um ditador? Ou deve agir em função dos seus princípios?

Se dúvidas houvesse: Putin tem interferido gravosamente na Europa como nos EU. Tem travado uma guerra por procuração com as democracias ocidentais através da subsidiação da ala radical do partido republicano nos EU, a coberto do trumpismo, tal como o tem feito entre nós, com as extremas direitas, os nacionais populismos e tribalismos culturais, seja na Hungria, na Polónia, ou em França. E connosco, portugueses, por contágio.

A lição de história de Bernie Sanders, as sucessivas análises políticas de John Mearsheimer, e até o artigo adversativo de Mário Soares, na Visão de há 15 anos, onde estão clarificadas as posições da NATO, de forma alguma justificam a invasão da Ucrânia pela Rússia. Apenas confirmam o que já sabemos: não há inocentes, há maus e menos maus. No que diz respeito à NATO como no que diz respeito à intrincada economia global. Ninguém se coibiu de fazer negócio com a Rússia autocrática. Estabeleceram-se relações de profunda dependência tanto quanto de servilismo. Com o gás como com os vistos Gold. As lições de história que ainda não aprendemos são as da independência energética e de uma economia menos opaca e servil. E como deter um gigante nuclear sem o detonar.

A questão ucraniana é a questão da democracia.

Já a de Putin, é uma questão imperial. Putin não vai parar até que seja parado. As regras que se nos aplicam, ao mundo ocidental, não se lhe aplicam. Nem na política interna nem na política externa. As dele são de outro conjunto de regras. São as regras da China. Do Irão. Da Venezuela. Da Bielorrússia. Putin diz-nos que não tem um projecto expansionista, que não invadirá qualquer país de leste, ou os países bálticos, tal como diz que não invadiu a Ucrânia. O mapa mental de Putin tem as fronteiras da União Soviética na Guerra Fria e estende-se até à Alemanha. Tal como o seu modo de funcionamento é o de um ditador. Vasco Pulido Valente, a nossa melhor Cassandra, informou-nos com absoluta clareza: perdido o império, perdida a União Soviética, o que sobra para cimentar a federação russa, para dar unidade à disparidade russa, é um projecto expansionista congregador de nostálgicas grandezas. Não porque interesse ao povo russo. Mas porque interessa a Putin, à manutenção do seu poder.

A despeito de quaisquer sanções, é Putin quem está a ditar os termos desta guerra: a Rússia de Putin invadiu, destruiu, bombardeou até hospitais – à semelhança do que fez na Síria. É a sua Rússia que tem montada uma campanha de intimidação. É Putin quem está a usar linguagem genocida quando afirma que a Ucrânia nunca existiu. Tal como é ele quem, com esse discurso e a promoção de rituais neo-nazis, está a fazer a imoral dessensibilização do nazismo.

Os nossos fantasmas estão todos vivos.

A autora escreve segundo a antiga ortografia