Depois de vermos consolidadas as nossas piores expectativas com a invasão da Ucrânia e a ameaça de Putin aos estados democráticos do bloco ocidental liderado pelos Estados Unidos, verificámos o que, de facto, é apropriação, palavra tão cara às esquerdas politicamente corretas e ao seu manipulável braço pseudo-cultural transpartidário e volúvel: o movimento woke. Não nos iludamos. Não são meia dúzia de millennials, ou de miúdos das novelas, ativistas de instagram, leitores do Segredo com o cliché da gratidão na ponta da língua, e para quem é mais fácil tomar partido do que pensar. Nem são apenas influencers preocupados com os patrocínios e o número de seguidores. São membros da academia, diretores de informação, jornalistas, cronistas, escritores, comentadores a soldo direto ou indireto dos governos que patrocinam a aniquilação do pensamento útil via destruição cultural – cultura e entretenimento não são uma e a mesma coisa; reformas estruturais não são agendas de causas progressistas: a visão em túnel destrói o necessário pluralismo.

Apropriação é o que está a acontecer em mais de metade do mundo: a apropriação da democracia. Apropriação não é ter a obra de uma poeta negra traduzida por uma poeta branca, como a falsa questão levantada a propósito da tradução do livro de Amanda Gorman. Nem uma estudante caucasiana vestir uma cabaia no baile de finalistas. Apropriação é um regime autocrático travestido de democracia. Apropriação é usar as regras e instituições democráticas contra a democracia.

A democracia é um estado de direito, com respeito pela carta dos direitos humanos; eleições livres com representatividade do eleitorado; instituições transparentes, independentes, responsáveis e responsabilizáveis, ao serviço do povo que somos todos nós, os governantes e os governados. Todos nós. Não os eleitores do partido do governo. Não os familiares e amigos do governo. Todos nós. Num regime democrático as instituições de poder e decisão devem auto-fiscalizar-se, e fiscalizar-se entre si, para garantir a manutenção da liberdade e independência, e a alternidade. A democracia exige a intervenção da sociedade civil e uma imprensa livre. O ideal democrático norteia a construção da democracia, uma construção aberta aos mecanismos correctivos das suas próprias falhas e limitações. Esses mesmos mecanismos são os que nos permitem identificar a desconstrução democrática, a queda das democracias liberais, e dos ideais de liberdade, justiça, igualdade, paz e prosperidade.

A Rússia de Putin não é uma democracia. É uma autocracia cleptocrática posta em causa na sua linha de fronteira pelos esforços ucranianos para transitarem para um regime plenamente democrático e com integração na União Europeia. Isto é um desafio à autoridade e deixa no ar que os russos respiram a questão que realmente ameaça Putin: e nós, povo russo, podemos ser uma democracia? A Ucrânia não é apenas um país, Navalny não é apenas um homem, são um movimento pró-democrático e por isso têm de ser esmagados.

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Os regimes autocráticos, como o russo, não visam o bem-estar da sua população, visam a expansão do seu modelo de governança através da disseminação de governos fantoches, extensões protésicas, patrocinados com a economia negra da corrupção lavada em investimentos legais. Visam a criação de subsidiárias. E visam o enriquecimento do núcleo de governação, familiares, amigos, representantes. As autocracias, tal como as democracias iliberais, fortalecem-se através da desinformação veiculada pelas redes sociais e imprensa, criando a cizânia civil. Esta forma de governança infiltra-se nas instituições públicas, como nas privadas ao seu serviço, ao ponto da inviabilidade de resolução através de eleições livres – vimo-lo num regime democrático com Trump e a recusa de concessão de vitória a Biden. Em simultâneo, com pressões económicas e comerciais sobre governos e instituições estrangeiras anula-se a visão crítica – em Portugal aconteceu durante anos com os rapapés da imprensa à princesa Isabel dos Santos. Isto que é válido para a Rússia de Putin, é válido para a China de Xi Jinping, ou para a América iliberal de Trump que levou a cabo a mais vergonhosa transição de poder numa democracia dita consolidada. Isto é a apropriação das democracias. Externa e internamente. Uma a uma. E acontece debaixo dos nossos olhos enquanto a nossa atenção é desviada para a mobilização de inutilidades divisoras e enfraquecedoras, sejam as traduções ou as cabaias.

Esta é a situação que temos: a Europa não tem capacidade para se defender a si mesma, para assegurar a integridade das suas fronteiras, nem para travar a invasão de um estado soberano. Precisa dos Estados Unidos. A Rússia quer estender a sua esfera de influência. E quer a manutenção e expansão das autocracias. A China anti-democrática observa. Fará com Taiwan o que a Rússia fez com a Ucrânia enquanto se enraíza no continente africano. E será o novo parceiro comercial da Rússia suprindo aquilo que as empresas ocidentais retiraram. A China comercial e tecnológica não deixará cair a Rússia de Putin, a Russia S. A..

Mas não será, no entanto, a situação que teremos. Zelensky deu substância à ideia de herói. O herói que a Ucrânia merece, que inspirou a mudança de comportamento da UE e dos EUA, aquele que diz, não a César, mas às democracias ocidentais: os que vão morrer saúdam-te. Sabe que será executado. Como sabem muitos que estão nas linhas da frente – as infames listas de abate. Sabem tal como nós sabemos que a Ucrânia conforme a conhecemos não voltará a existir, na melhor das hipóteses haverá uma resistência ucraniana.

Apesar desta concórdia tardia em que Europa, Estados Unidos, mundo ocidental, nos unimos para sancionar a Rússia a posteriori por não termos tido a coragem de a sancionar a priori, antes desta invasão que nos envergonha a todos, exceto ao PCP, a democracia regride. Apesar deste grande fôlego oferecido por Zelensky e pelo povo ucraniano, regride mesmo nos países com democracias consolidadas ou com falhas, que são a maioria. E está a ser atacada a partir de dentro – não há melhor exemplo das forças iliberais em ação do que o da divisão da sociedade norte-americana.

Num futuro próximo, à recessão democrática teremos de somar o mundo político conforme o desconhecemos, com novas, extraordinárias tecnologias que nos fazem transparentes, previsíveis, monitorizáveis, desde o pensamento que temos à saturação de oxigénio no sangue. Entre nós e o totalitarismo tecnológico só está a democracia.

Tudo indica que a Ucrânia será, primeiro tomada por Putin, e depois, já decapitada, entregue negocialmente a Putin. Apropriação. Há muitos anos, era estudante do secundário, e num manual, não me recordo do contexto, estava este terceto: a mulher, essa puta besta,/ se lhe damos o braço,/ logo quer a testa. Crimeia. Donbass. Onde se lê mulher, leia-se Putin. Leia-se autocrata. Leia-se tirano. A evidência de que será entregue é só mais uma razão para não entregar a Ucrânia numa nova conferência de Yalta.

Hoje à noite, na Gulbenkian, vi os holofotes sobre o palco em azul e amarelo. Hoje, a orquestra, antes do concerto, tocou o hino da Ucrânia que uma sala cheia e comovida ouviu de pé e aplaudiu. Mas aplaudir não chega.

Este é um momento charneira. É agora que se decide a direção do nosso futuro. Na tecnologia, no clima, na política.

Os países democráticos, nós, os democratas, temos de nos unir e agir em bloco. E em força.