Aqui há uns anos, a minha editora, a Guerra e Paz, convidou-me a traduzir o ensaio de D.H. Lawrence sobre A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne, para o incluir na publicação desse romance traduzido por Fernando Pessoa. Este clássico passado no século XVII, nos arredores de Boston, conta-nos a história de Hester Pryne, uma mulher que, por ter tido um filho fora do casamento e se ter recusado a identificar o pai da criança, é condenada ao uso de uma letra escarlate sobre o peito, para o resto da vida: um A de adúltera. Isto, para além do escárnio, da humilhação e do ostracismo – os meios ao dispor daquela comunidade para se regular socialmente, manter as instituições, a ordem, enfim, o controlo. No entanto, o pai do filho ilegítimo, é o admirado, moralmente pleno e sobrecarregado pela culpa, pastor daquela comunidade de puritanos onde o exercício da hipocrisia é uma higiene diária.

Três séculos depois das desventuras de Hester Pryne, seguros da superioridade das nossas conquistas sociais, progressiva e globalmente abrimos espaço para a instalação de códigos sociais e morais tendencialmente hegemónicos e totalizantes. Se antes o perigo era o da transgressão da norma, hoje, o perigo é a norma. Não há pensamento: ou há submissão ou há cancelamento. Somos diligentemente vigiados para a detecção de qualquer desvio. Não pode haver, de facto, diversidade porque alteridade significa ser-se outro, ser-se diferente, ser-se individual. Não há indivíduos na cultura Like, há massas dirigidas por algo ou alguém contra, ou a favor, de algo ou de alguém: tanto pode ser o Capitólio ou a cancelada Margaret Atwood. O revisionismo da obra de Mark Twain. E contra este abuso não há comissão onde apresentar queixa. O caminho aponta para a aniquilação da memória pois a história deixará de existir: não se coaduna com o neo-puritanismo.

Todos lemos os títulos dos jornais, mas muito poucos lemos os acórdãos judiciais. Não conheço Bruno de Carvalho. Foi-me apresentado nas manchetes como um sociopata posteriormente ilibado das acusações e, no entanto, e por razões que desconheço, destituído até de sócio de um clube que não é o meu. Vi-o no BB Famosos. Vi-o ser divertido, provocador, irritante, cansativo, imaturo, apaixonado. Vi-o estabelecer uma relação amorosa consentida com uma mulher adulta. Não vi uma mulher maltratada nem abusada. Mas vejo uma mulher a ser menorizada por outras mulheres e homens por estabelecer uma relação nos termos que entende ter. A liberdade também passa por ter uma identidade sexual fluída, por gostar de homens e de mulheres, por não gostar nem de homens nem de mulheres, por conceder aqui e negar ali, por mudar de opinião a cada cinco anos, nunca, ou todos os dias. Até por gostar de ser agarrada pelo pescoço. Ou de agarrar pelo pescoço. É só uma forma mais óbvia de dizer que não somos monolitos. Nem Bruno de Carvalho nem Liliana Almeida, nem nós. E todos temos traços sádicos e masoquistas, gestos dominantes e gestos submissos. Há zonas de sombra e ambiguidade em todas as relações amorosas. Os limites das relações amorosas são estabelecidos pelo consentimento. Não façamos de uma mulher adulta e com voz a Hello Kitty que nem boca tem.

A liberdade também passa por agarrar pelo pescoço moral e sexual a namorada de um ex-marido. Assim fez Ana Garcia Martins com Sara Veloso, no Campo Pequeno, diante de milhares de pessoas – circula nas redes sociais: «Mateus, sabes porque é que a nova namorada do papá é assim toda fit e toda em forma? É porque ela não gosta nem de rebuçados nem de gomas nem de pipocas… E também não gosta de chupas. Ai, não, de chupas gosta. Ó Mateus, eu sei que ela é super magra porque faz maratonas, corre imenso. Sabes quem também é que corre muito, amor? São as pessoas que têm peso na consciência porque fizeram uma coisa muito má, como separar o papá da mamã.» Ninguém veio a público vitimizar Sara Veloso, afirmar que estava a ser abusada num espetáculo de entretenimento, nem condenar esse espetáculo. Nem apresentar queixa contra Ana Garcia Martins por agressão verbal. E ainda bem. A liberdade também pode ser humor crítico e corrosivo e explorar as nossas zonas de sombra e ambiguidade.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O debate que é preciso fazer nas praças públicas é o do futuro da civilização, a escalada da ameaça democrática facilitada pelos tribalismos da extrema esquerda e pelos redutos atávicos da extrema direita. O fundamentalismo social, moral e religioso aliado ao empobrecimento cultural e económico já se provaram de uma eficácia perversa ao longo da história. Basta eleger o inimigo e organizar a multidão. Estaline, Mao, Hitler, fizeram-no exemplarmente. Trump e Putin também o estão a fazer. O movimento woke não tem campos de trabalho porque cria os do desemprego e do ostracismo, mas está ao serviço destes extremos que nos ameaçam em cada fractura inútil que provoca no tecido social.

Sim, os códigos sociais estão a mudar. E em muito para melhor. Mas a verdade é que sempre estiveram em mudança, as comunidades são orgânicas. E tão mais ricas quanto plurais.

Não é Bruno de Carvalho quem precisa de usar a letra escarlate sobre o peito. A de abusador. Somos nós. A de Ausentes. Ausentes do pensamento. Ausentes da decisão informada e crítica. Ausentes do futuro que se constrói à nossa revelia.