Desde há meses que o país político e mediático vive sob o ruído de constantes casos, tendo o Governo como epicentro, o Presidente e a Assembleia da República como aceleradores e a comunicação social como câmara de eco, explorando alguns meios até à náusea cada um deles, quase sempre em modo especulativo e em formato de julgamento popular. A informação tabloide e o modelo televisivo reality show tomaram conta do país e a política passou a ser tratada no registo “Noite da má-língua”.

O país tem assistido incrédulo a este verdadeiro tsunami, onde se confundem questões menores com problemas estratégicos, falhas de serviços com responsabilidades políticas, em cuja análise e apreciação não se distingue o essencial do acessório e as lições básicas da heurística e da hermenêutica, típicas das ciências que estudam a realidade histórica e social, jornalismo incluído, são ignoradas em função das opiniões dos especialistas e dos comentadores de serviço.

Do ponto de vista meramente político, temos um governo de maioria absoluta, legitimado pelo voto há pouco mais de um ano, sustentado por uma força política que ainda não deu mostras de desagregação, mas, por um golpe de mágica, a dissolução da AR pelo Presidente da República tornou-se na Ordem do Dia, como se fosse uma atividade de rotina e a situação o justificasse.

O próprio presidente tornou-se ator desta novela de mau gosto, alimentando com iniludível constância essa ideia, aparentemente prazerosa, de ter poderes excecionais que pode usar a qualquer momento de acordo com a sua análise sobre a situação política. É fato que o poder existe, mas usá-lo é muito diferente de enunciá-lo, o risco é imenso, sobretudo quando não se vislumbra nenhuma alternativa credível de poder e há uma maioria sólida que apoia o Governo na AR.

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Apesar de tudo, o país move-se, como diria Galileu, o Governo assegura o normal funcionamento do Estado, a situação económica é positiva, as dificuldades decorrem mais da conjuntura, do pós pandemia e da guerra, do que de erros do Governo, e estes são normais em qualquer país onde a liberdade de imprensa permite conhecer o que se vai passando nos gabinetes governamentais.

Grande parte do que tem ocorrido assemelha-se aos grandes escândalos judiciários que começam com julgamentos na praça pública e acabam em nada ou quase nada nos tribunais. Quanto do que tem produzido escândalo e alarme público, são factos sem nenhum fundamento sólido, pequenas peças de um puzzle montado de forma a alcançar audiências, vender títulos, aumentar shares.

Não está em causa que há erros do Governo, decisões incorretas, faltas graves em procedimentos burocrático-administrativos, mas responsabilidade política é outra coisa, e meter tudo no mesmo saco é um mau serviço prestado à democracia e a uma evolução positiva do sistema político em que o país vive há meio século.

Sejamos claros, neste momento, o PS e o Governo são os únicos garantes de que o país vai em frente e ninguém de bom senso pode pensar que a queda do Governo ou dissensões internas no PS seriam benéficas. A dissolução e eleições antecipadas seriam uma verdadeira hecatombe que ainda mais acentuaria as fragilidades nacionais, e esta devia ser razão bastante para se amparar a maioria e não para a desgastar a cada dia. A crítica é uma coisa, o bota-abaixo, outra muito diferente.

O que tem ocorrido na CPI da TAP é um espelho do pior que o país tem, deputados inquisidores, mal-educados, desrespeitadores dos mais elementares direitos dos depoentes, cada um a tentar ser mais durão do que o outro, sendo exceção os que têm mostrado sentido de Estado nas funções que desempenham.

Que legitimidade ética, moral e política pode ter alguém que se comporta daquela forma para ajudar a fazer luz sobre questões que, aparentemente, são do interesse da nação? Basta ver o facies da maioria dos perguntadores para se temer o que por ali ocorre. Nem nos tribunais, muito menos numa comissão de inquérito parlamentar, é aceitável substituir a urbanidade do relacionamento pessoal pela soberba indelicada de quem se julga dono da verdade e detentor de uma superioridade moral que ninguém reconhece.

E que comentário pode merecer a utilização criminosa de informação e documentação em segredo de justiça, a partir da qual se monta uma “investigação jornalística” em que tudo desrespeita os mais elementares princípios do direito à privacidade, construindo-se uma verdadeira telenovela, como se não houvesse limites para a devassa da vida privada de ninguém, sonegando a quem ocupa cargos políticos qualquer direito à privacidade, quando os dados utilizados nem sequer levaram qualquer tribunal a constituir arguidos, muito menos ao trânsito em julgado de processos, lançados desta forma suscetíveis de provocarem danos gravíssimas à idoneidade de quem é visado.

Não se trata de inocentar ninguém, trata-se de respeitar direitos, liberdades e garantias assegurados pela Constituição, mas rasgadas por quem procede de forma juridicamente discutível e eticamente inaceitável.

Uma escuta é algo de uma gravidade imensa, sujeita a princípios legais muito rigorosos e que uma vez traficada jornalisticamente passa a ser um crime, que impunemente se pratica e que, diariamente, viola os direitos dos visados. Publicar ou publicitar uma escuta sem respaldo jurídico ou autorização pessoal é um crime, é uma violação da privacidade de alguém que tem os mesmos direitos dos que decidem publicitá-la.

Falar do interesse público nesta matéria é uma falácia. Quem decide sobre o interesse público de uma matéria quando a informação decorre de um crime? No limite, nenhum crime é corrigido por outro crime e em matéria criminal há milénios que compete aos tribunais essa decisão.

Voltando ao mais importante, a vida dos portugueses e o governo a quem compete zelar pela criação de melhores condições de vida para todos, é tempo de quem não se revê na selva informativa e mediática abandonar o silêncio, que se tornou incómodo, e expressar publicamente que nem todos estamos contra o Governo ou a favor do desrespeito das instituições.

É preciso que o Governo faça melhor e se concentre na sua missão, que a oposição se reforce para poder ser alternativa, pois, todos sabemos que em democracia é necessário haver sempre alternativas credíveis, mas também é necessário que quem é militante do Partido Socialista assuma um papel ativo de suporte à governação e não se deixe emudecer perante a vaga concertada de ataque à solução que os portugueses, livremente, escolheram nas urnas e cuja mandato ainda tem vários anos pela frente. Então, será o momento oportuno para saldar todas as contas.