Conversei com uma árvore, foi de madrugada. Eu subira a Avenida da Liberdade, em Lisboa, em passo de corrida, sentindo-me perseguida. Vinha acossada nesses dias pelo que me haviam dito: que em lado nenhum do mundo estamos alguma vez seguros. De facto, tudo me trespassava nesse tempo como uma ameaça.
Apenas a árvore me sossegou, quando cheguei, estafada, ao Jardim da Estrela. Deitei-me no banco diante dela, a olhar as raízes gigantes. E então senti que a árvore me falava, pude olhar os minúsculos seres subindo o tronco, formigas, aranhiços. Senti-me em comunhão com a árvore e com as criaturas que a habitavam. Nunca me havia sentido tão mínima, tão absolutamente pequena. A majestosa árvore da borracha teve naquele momento a estatura de um pai, chamando-me para junto de si, sossega, minha querida, está tudo bem, descansa, que eu não deixo que ninguém te faça mal. Por instantes, respondi também, e deixei-me dormir à medida que o Sol nascia, embalada pelo ritmo da respiração da árvore, que lançava uma aura húmida e limpa em meu redor. Foi o mais próximo que alguma vez estive de Deus, naquelas horas em que via tão aflita, depois de toda a linguagem se me ter tornado hostil, quando todas as caras me olhavam, fazendo-me sentir culpada de um crime que não sabia qual era.
Regressada à saúde, protegida pelos meus, penso em modos de agradecer à árvore que me deu guarida. Não adianta pagar a promessa que não lhe fiz, ir de joelhos até um lugar santo, rezar, sim, mas a quem?, dizendo o quê, qual é o Deus das árvores, ou que canal me ligará à árvore-Deus?, como fazer com que me ouça?
Estou virada para a cidade com a noção de que, nos momentos em que ela testemunha o nosso desassossego, pouco ou nada nos salva senão, também na cidade, aparições como a árvore da borracha na minha madrugada tenebrosa. São pessoas, cães vadios, pombos, nuvens, desenhos na calçada, um olhar, uma flor inesperada, roupa ao vento.
Desconhecemos a forma e o aspecto daquilo que nos protegerá, não sabemos que cara têm os amigos que nos salvam quando nos vemos no limite, se eu pudesse decidir então Deus eram essas caras amigas que se atravessam no nosso caminho, na cidade, para nos manter vivos. E talvez não haja mesmo meio de lhes agradecer, a não ser deixando que nos atravessem, como aconteceu comigo daquela vez, que nos raspem com a sua seta, e nos salvem do pior.
Algum tempo depois daquelas horas em que dormi aos pés da árvore da borracha, embalada por ela, passeio no Jardim da Estrela com o meu amor, que a fotografa e admira. Não lhe reconheço agora nada do ser que comigo conversou quando precisei. É agora apenas uma majestosa árvore da borracha centenária, espalhando sombra e beleza no jardim, posando para quem passa, muda, magnânima.
Talvez seja assim, e o Deus das coisas não humanas apenas acorde nelas quando é preciso, apenas fale através delas quando alguém está precisado de as escutar, mantendo-se calado o resto do tempo, divertido com a forma como vivemos a nossa vida, atarefados, impacientes, desatentos.
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Uma árvore
Regressada à saúde, protegida pelos meus, penso em modos de agradecer à árvore que me deu guarida.