A internet põe-nos de facto em contacto com tudo, traz-nos toda a informação a casa, abre-nos ao mundo instantaneamente e, consequentemente, proporciona a informação necessária a uma vida democrática mais aberta, mais igualitária e participada e, portanto, mais sã. Era este o discurso oficial e isto que se esperava da internet; uma corrente de ar fresco na nossa enfadonha democracia. Acreditava-se que ao pôr todos em contacto recíproco a internet descentralizaria os poderes e aboliria as hierarquias, pois todos estão ao mesmo nível e cada um se representa a si mesmo. Uma democracia mais profunda, eis o que dela se esperava e espera. Mais participação, emancipação individual e mais associativismo, dizia-se.
Temos de admitir que a internet tem inúmeras vantagens de um ponto de vista democrático e até que tais vantagens mais que compensam as desvantagens. O cômputo geral é positivo. É verdade, mas há um reverso da medalha.
Vejamos. O manancial da informação disponível é tamanho que precisamente obriga a seleccionar. Ora, é precisamente aqui que está o perigo. Seleccionamos o quê? Tendencialmente aquilo com que à partida concordamos e que nos agrada. De modo que ou nos mortificamos a conhecer as opiniões e os pontos de vista opostos aos nossos ou, compreensívelmente, aliás, confirmamos os nossos e constatamos até, pelas redes sociais, que há muita gente que pensa da mesma maneira, mais até do que julgávamos. Isto favorece o enquistamento das opiniões e favorece obviamente a intransigência e até a radicalização. A digitalização favorece o conhecimento mas também o fanatismo e o isolamento.
A internet pode contribuir poderosamente para estreitar o horizonte cultural e cognitivo de cada um de nós, progressivamente acantonado no seu círculo de interesses e valores e desligado de tudo o mais. Desencadeia um efeito de encapsulamento e de isolamento. Afinal a internet é como os restaurantes; facilita a escolha à la carte pelo que só comemos e bebemos aquilo de que gostamos. Não nos importamos com o que o vizinho come nem queremos saber.
Nada de bom vem daqui. Do ponto de vista democrático, a internet pode até contribuir para estreitar a razão democrática em vez de a fortalecer. A democracia, já o disse, não vive apenas do voto, vive da razão e esta quanto mais disseminada e descentralizada estiver melhor, porque só assim se proporcionam os argumentos a que há que atender para melhor escolher e decidir. Pressupõe a circulação das ideias. A democracia é também, afinal, a organização pública do confronto e da argumentação racionais. Vive do conhecimento e das capacidades que ele proporciona. Tem valor epistemológico ou seja, gera e aprofunda o conhecimento através das instituições e procedimentos abertos à participação. A digitalização pode favorecer a democracia, sem dúvida, mas apenas se por seu intermédio se lograr a diversidade e o confronto dos pontos de vista.
A lei dos grandes números (teorema do Marquês Nicolas de Condorcet) diz-nos que quanto maior o número de indivíduos participantes na decisão mais correcta esta é. Esta lei foi muito bem vista nos tempos democráticos do início da Revolução Francesa. Mas cedo se percebeu que é apenas aproximada e não absolutamente certa. Também a internet pode levar a resultados opostos aos que dela se esperam e, na verdade, contribuir para atrofiar o conhecimento e a democracia digital dela consequente.
E há outros factores negativos e ter em conta. O que através da internet a maior parte das vezes se fomenta é a conversa e nada mais. A conversa não é necessariamente um diálogo racional e proveitoso (dia logos). Ora, a democracia depende da criação de um verdadeiro espaço deliberativo e este não se confunde com a tagarelice resultante do acesso livre e imediato aos meios tecnológicos postos ao dispor de cada um. A tecnologia não segrega automaticamente a maturidade e a ilustração necessárias às decisões colectivas. A conversa privada não se confunde com a informação pública e nem sempre contribui para a formação da opinião. Os seus resultados são voláteis e passageiros, emocionalmente motivados e em constante revisão. Arriscamo-nos a a pôr a opinião a reboque de um conjunto de banalidades sem qualquer valor formativo. Por outro lado, o excesso de informação e a facilidade da mobilização não geram automaticamente a formação necessária para compreender e decidir em conformidade. Não é assim que se consegue uma opinião pública consistente e válida que esclareça as decisões em seu nome tomadas. Veja-se o que se passou na «primavera» árabe e no movimento francês dos «gilets jaunes»; as redes sociais trouxeram as pessoas à rua, é verdade, e daí?
Mas há mais; a internet não traz só o acesso livre à informação e à expressão. Também facilita as técnicas de marketing político e a manipulação da verdade. O marketing político que a internet estimula trata o cidadão como um sujeito passivo a conformar. A internet funciona a favor do cidadão mas também contra ele. É apenas uma plataforma digital e nada mais. Não é um forum racional. Nela coloca-se tudo, o bom e o mau. Até as ditaduras podem colocar a internet ao seu serviço. Não faltam exemplos. Ao mesmo tempo, a informação não provém de nem circula num terreno virgem e inexplorado. Reproduz as clivagens e os preconceitos já existentes e frequentemente agrava-os em vez de os dissolver. A Wikipédia portuguesa é uma vergonha de facciosismo, de falta de rigor e de erros gramaticais.
Os motores de busca condicionam a atenção do público e passam apenas uma informação já previamente tratada e conveniente para quem a tratou. A informação depende de algoritmos de que o público nem tem consciência. Sem algoritmos a busca não pode funcionar e os algoritmos, por sua vez, predeterminam as opções. O público, coitado, sente-se muito satisfeito porque pensa que é soberano mas não lhe passa pela cabeça que o jogo está viciado. O autoritarismo sob veste imparcial está à espreita porque os algoritmos criam novas fontes de poder. E não é com mais legislação em nome da defesa do consumidor e da concorrência que se resolve o problema porque à Google e ao Facebook já não interessam os preços, querem é a influência e o poder daí resultante.
É preciso afastarmo-nos da ciberutopia. Esta é apenas mais uma de muitas. Os tecnocratas fizeram da técnica uma ideologia redentora e não querem ver que ela é apenas um instrumento. A técnica não gera por si só a necessária formação. Ora, a democracia depende da construção de uma opinião pública forte e esclarecida. Esta, por sua vez, nada tem a ver com a eficácia dos meios tecnológicos. Estes, por si sós, não levam a nada. O acesso à internet não equivale à consolidação da democracia. Sem discernimento e crítica a internet piora as coisas em vez de a melhorar.
A democracia depende do público e não dos meios tecnológicos. Das maravilhas da técnica não há muito a esperar na consolidação da democracia e do uso público da razão. A técnica é apenas um meio, por muito que alguns basbaques queiram fazer dela um fim em si. Nunca substituirá o nosso discernimento.
A tecnologia já mostrou do que era capaz. O que faz falta agora é a filosofia política e a abertura para a razão que esta proporciona. Sem ela os tecnocratas são incapazes de pensar nas consequências das suas realizações. No fim de contas, o problema foi e é sempre o mesmo. A tese nietzscheniana do «eterno retorno» ou seja, da perenidade dos (mesmos) problemas em diversos contextos, sempre por resolver, não anda nada longe da realidade.