O dilema colocado ao povo americano nas eleições de Novembro epitomiza o problema da democracia nos nossos dias: em quem votar, se nenhum dos candidatos que se apresenta me parece ter condições para exercer com competência e princípios o cargo a que se candidata?

Em quem votar, se nenhum julgo digno desse cargo, eu, que vou ter de o escolher? Cargo esse que, em contraste, se me afigura de extrema importância, por se tratar, por exemplo (sei lá), do Presidente com poder executivo, a quem vou, pelo meu voto, atribuir o direito, por exemplo (sei lá), de optar por carregar ou não no botão nuclear?

Em quem votar, se nenhum dos dois me merece confiança? Se as acusações entre ambos excedem o que a normalidade e a decência recomendam? Se em cada novo dia são reveladas fraquezas, ou pecados, ou comportamentos censuráveis, estando já ambos sentados no banco dos réus da opinião pública, e esse não é um juiz condescendente.

Não votes, recomendam-me. Mas nesse caso seria eu a faltar a um dever, cívico, é certo, e a sentir-me responsável pelo resultado final, que eu sei que será sempre, a meus olhos, mau. Votar e contribuir para escolher alguém em quem nunca votaria se a alternativa fosse diferente ou abster-me e contribuir para (deixar) escolher alguém em quem não votei porque não valia a pena, já que na alternativa também não votaria?

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Clinton é o sistema político norte-americano no seu esplendor: advogada, mulher de Presidente, antiga secretária de Estado, senadora por Nova Iorque, a primeira primeira-dama a concorrer a um cargo electivo, candidata democrata. Aos 69 anos (completados há 3 dias), Hillary Clinton pode tornar-se a primeira mulher a chegar ao cargo de Presidente do mais poderoso país do Mundo. É milionária (de certeza, pelos padrões portugueses), elitista, inteligente, com um currículo notável, raiando a incompreensão haver tanta gente a dizer dela ser incompetente ou incapaz; e tem o carisma de um bloco de gelo.

Trump é o anti-sistema político americano no seu paroxismo: aos 70 anos (mas a vender saúde, diz ele), nomeado pelo partido republicano, nasceu em Nova Iorque e herdou a companhia de construção do pai, Fred Trump, com a qual construiu torres, condomínios, campos de golfe, projectos de desenvolvimento urbano em Manhattan. Foi organizador de concursos Miss USA, participou em programas de televisão e apresentou The Apprentice, um reality show em que contratava ou despedia concorrentes (para as suas empresas). É milionário, aliás multi-milionário, levou à falência várias empresas, contratou sem pagar, despediu sem pestanejar, mas quer acabar com o sistema, não se sabe bem para o substituir por quê. Tem carisma, isso tem, tanto que até queima.

Em quem votar, perguntam-se norte-americanos, a imprensa um pouco por todo o Mundo e todos nós, simples mortais que assistimos aos três debates como se de reality shows se tratasse. As opções assustam muita gente. Numa entrevista ao JN, o norte-americano e escritor Richard Zimmler, resume: “Assistiu-se à elevação do “homem do espetáculo, da televisão, que conseguiu popularidade junto dos pobres, que têm aumentado desde o governo de Ronald Reagan”. Já Hillary partiu na posição de “alguém ligado às estruturas financeiras. É a criatura do poder”. O homem do espectáculo contra a criatura do poder, eis uma frase que dava um título de um (mau filme) da série B.

À caracterização dos dois candidatos – populista/elitista, para simplificar (muito), ou anti-globalização/ globalista, para complicar (mais) –, junta-se um crescente sentimento de que algo está podre no reino da Dinamarca: Hamlet, entre outras coisas (como incesto, assassínio, conspirações várias), aludia a corrupção, mas as suspeitas sobre os dois candidatos a Presidente americano são tantas que se torna difícil elencá-las.

Trump mente, Hillary manda e-mails oficiais de computadores privados (e a decisão recente do FBI de voltar a investigá-la pode revelar-se decisiva para o resultado final das eleições), Trump é abusador e sexista, Hillary manda perseguir mulheres por envolvimento com Bill, Trump é desbocado e ignorante, Hillary é calculista e manipuladora, Trump é xenófobo e proteccionista, Hillary é globalista e anti-americana, Trump apoiou a invasão do Iraque, Hillary apoiou a invasão do Iraque, Donald isto, Clinton aquilo. Porque será que há, nestas eleições, a sensação de que nunca tanto lixo (permitam-me a expressão) foi vazado na praça pública pelas candidaturas, levando a que o voto se torne, para muitos americanos, um verdadeiro exercício de masoquismo?

Não é, e decerto os leitores ficarão surpreendidos, por causa de uma campanha mais negativa do que as anteriores. Pelo contrário, se a propaganda negativa sempre existiu, esta não será a mais maldosa campanha de sempre, a crer num relatório do Wesleyan Media Project:

Tom das campanhas presidenciais norte-americanas dos últimos anos

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O que há nos dois candidatos que pode explicar esta sensação “hamletiana” de que algo vai mal na campanha eleitoral é então, na minha opinião, uma característica de cada um deles, simples de entender mas difíceis de compatibilizar com a escolha entre duas únicas opções:

Trump é o oposto de qualquer candidato que os Estados Unidos tenham tido nos tempos mais recentes – ou em qualquer tempo de que me recorde -, imprevisível, alheio a regras e convenções políticas, uma espécie de buldozer eleitoral ou, se quiserem, de “bullier” político. Clinton é impopular, e até o seu eleitorado natural tem dificuldade em optar por ela; o principal risco que corre é que os jovens, seduzidos aliás pela mensagem do seu rival democrático Sanders, não se sintam suficientemente motivados pelo objectivo de derrotar Trump e fiquem em casa.

É isto, mas isto é muito.

O destino dos Estados Unidos, mesmo que desvalorizemos a escolha de 8 de Novembro, joga-se na opção difícil entre dois candidatos em quem a maioria do eleitorado preferiria não ter de votar. E contudo terá de o fazer e, com a sua escolha, determinar não apenas o destino dos americanos mas o de nós todos, cidadãos do Mundo.