«Estamos em guerra – porque de uma verdadeira guerra se trata». «E quanto mais depressa formos, mais depressa poderemos salvar vidas». «Nesta guerra, como em todas as guerras, só há um efetivo inimigo, invisível, insidioso e, por isso, perigoso.» «Nesta guerra, ninguém mente nem vai mentir a ninguém.»

Depois de se ter hipocondriacamente isolado na sua casa particular em Cascais, não estando doente nem sequer infectado e sem ter qualquer sintoma de covid19, Marcelo Rebelo de Sousa declarou a 18 de Março de 2020 o primeiro estado de emergência nacional desde 1974, usando as expressões citadas no parágrafo antecedente.

O país estava em confinamento geral obrigatório, uma medida antes sempre desaconselhada do ponto de vista da sáude pública e nunca decretada a pessoas saudáveis, salvo na China onde essas práticas tirânicas são regulares, mas que até essa data eram entendidas pela generalidade das sociedades democráticas como desumanas e moralmente grotescas. Iniciava-se a ladainha hipnotizante das “duas semanas para achatar a curva” que acabou por se manter nas nossas vidas durante dois anos.

Desde essa altura, início do maior ataque generalizado dos governos às liberdades individuais de sempre, aquilo que alguns questionavam e criticavam veio muito paulatinamente a tornar-se opinião mais corrente na sociedade, embora esteja longe de ser dominante em Portugal. Já não são objecções exclusivas de “chalupas” ou “negacionistas” como muitos asquerosa e cobardemente apelidavam (e continuam a qualificar) pessoas razoáveis, informadas, mas com pensamento crítico próprio.

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Uma a uma, sem excepção, as chamadas “medidas de combate” à covid, instauradas pelo governo e sugeridas por agências públicas lideradas por zelosos guardiões da boa imagem da tutela, revelaram-se invariavelmente ineficazes, bastas vezes contraproducentes e frequentemente ridículas. O exemplo mais perverso e cruel que delas ainda hoje perdura é a obrigação legal do uso de máscara em supermercados ou transportes públicos, culminando na sádica sujeição de crianças a idêntico normativo dentro das escolas.

Mesmo que já se tenham apercebido do mal infligido às pessoas (sobretudo os mais vulneráveis e desfavorecidos), obrigando à alteração de comportamentos e suspensão de projectos de vida com base em orientações e raciocínios enviesados que claudicaram ao medo e à pressão social, quase ninguém da classe dos especialistas, das hordas de zeladores de cumprimento da inédita etiqueta sanitária ou da catrefa de influenciadores twitteiros admite os erros grosseiros que cometeram e muito menos assume culpa da imoralidade de 24 meses de políticas e decisões que, ao contrário da narrativa prevalente, nunca foram baseadas na ciência.

Embora não se espere que venham a sentir vergonha na cara, esperemos, pelo menos, que o fracasso das suas teses já não possa ser encoberto e, se remorso de consciência não é algo que os pareça afectar, talvez a negação do perdão popular os faça ansiar pela indulgência divina. No entretanto, esses autoproclamados “agentes de saúde pública” não deixarão de transferir responsabilidades para terceiros, invocando, entre outras, a balela de que à data dos factos o conhecimento científico não permitia opções e fórmulas de acção diferentes das preconizadas. Esta gente quer ser inimputável e exonerar-se do desastre social que ajudaram a promover. Daí que o mais conveniente seja fomentar uma amnésia pública sobre tudo o que foi feito e adoptar o discurso de que agora o que importa é seguir em frente e não agarrarmo-nos a questiúnculas passadas ou polemizar sobre o que criou divisões e segregação.

Porém, o melhor caminho de futuro é apreendermos as lições do passado recente para nos prevenirmos contra abusos idênticos e nos protegermos de semelhantes tragédias a que nos queiram sujeitar a pretexto de outra qualquer “emergência” ou “guerra” declarada por decisores políticos. É que a vontade e as primeiras manobras para se passar a decretar estados de excepção sempre que os focus group aconselhem já veio do próprio chefe de Estado. O Presidente deveria ser uma derradeira garantia dos cidadãos perante os abusos do Estado, mas foi ele o primeiro a fazer vista grossa sobre a evidente falta de cobertura constitucional e até ilegalidades reconhecidas pelos tribunais acerca de medidas do Governo no âmbito da covid. Marcelo defende a criação de uma lei específica sobre emergência sanitária e, se necessário for, uma revisão constitucional à medida deste objectivo. Dito de outra forma, pretende um salvo-conduto para suspender a eito direitos fundamentais, evitando controvérsia e escrutínio acerca da privação das liberdades dos cidadãos. A artimanha combinada com o Governo, e certamente com a aquiescência da maioria dos deputados, é tão desbragada que chamaram para apoiar na elaboração deste futuro novo diploma a Provedoria de Justiça e a Procuradoria-geral da República, entidades que deveriam fiscalizar a iniciativa legislativa em vez de nela participarem e serem, na prática, co-autores da mesma.

Mas quero destacar de toda esta penosa procissão de malfeitorias e urdidura de protofascismo sanitário com 730 dias de duração, uma grande mentira e uma grande ilusão.

A grande mentira inicial foi a de que todos os grupos da população tinham o mesmo risco de ficarem doentes. Desde muito cedo, e seguramente antes da declaração do estado de emergência, várias pessoas qualificadas, tanto em Portugal como no estrangeiro, fizeram notar que a covid era uma doença com a qual seria até relativamente fácil de lidar porque embora o risco de infecção fosse semelhante para todas as faixas etárias, o risco de contrair doença relevante ou grave era acentuadamente e desproporcionalmente muito mais elevado para os idosos do que para o resto da população. De tal forma que em casos sem outras patologias graves associadas, a grande maioria dos óbitos ocorreu em pessoas cuja esperança de vida restante era já, infelizmente, muito reduzida. Estes dados e evidências estavam disponíveis à época e eram mais do que suficientes para serem usados na definição das políticas públicas. Mas o governo fez exactamente o contrário e não só foi complacente como deliberadamente promoveu a mensagem falsa e corrompida de que estaríamos «todos juntos», «todos no mesmo barco» e igualmente sujeitos às consequências gravosas do vírus. Ou seja, ao contrário do império da verdade que prometeu o pior e mais inútil Presidente da República que Portugal já teve em democracia, cavalgou-se uma patranha e adoptaram-se políticas indiscriminadas e uniformes para todos, que nunca foram necessárias e muito menos úteis.

A grande ilusão ainda é a de que, por mais medonha que seja a ameaça, com dinheiro e alocação de recursos suficiente, o Estado tudo pode fazer para nos salvar. Ao longo de décadas a população tem vindo a ser voluntária e involuntariamente endoutrinada acerca da omnipotência do Estado, criando na comunidade demasiadas expectativas quanto ao que os governos podem fazer para proteger os cidadãos dos infortúnios. Foi-se perdendo a noção da responsabilidade primeira da protecção individual e conferiram-se poderes alargados aos agentes do Estado para implementar medidas extremas e contrárias a um módico de preservação da autonomia e liberdade das pessoas. A prossecução lírica e delirante de uma política de “covid zero” e a infantil e egoísta quimera de uma vida sem risco cedo levaram muitos a não olhar a meios para criar uma falsa sensação de protecção em vez de viver a vida tal qual ela é na realidade. Esta grande ilusão tem também algo de uma religiosidade pervertida e de uma triste falta de humildade ao crer que o Homem pode dominar e impor-se à Natureza.

Quando renunciamos à liberdade e em nome da segurança atribuímos ao Estado o direito de ingerência na esfera de responsabilidade individual, a condição moral da nossa civilização perde-se e entramos numa inexorável marcha para a desumanização.

Como dizia o replicante Roy para Deckard na cena final do filme Blade Runner, de Ridley Scott: viver em medo é uma experiência singular, mas essa é a condição de ser escravo.