Marcelino António Lourenço ia nos seus 32 anos e muitos de mar quando saiu num navio na véspera do ano novo de 1820 de Moçambique, caminho do Rio de Janeiro. Tinha começado aos 13 no S. Manuel, que fazia a ligação de Lisboa à Baía. Passou pelo Nossa Senhora do Loreto, pelo Fortaleza e outros tantos mais. Ainda solteiro, nascido e criado junto ao Tejo, ali para os lados de S.Nicolau, ao Campo das Cebolas, nunca lhe tinha passado pela cabeça outra coisa “que andar nos barcos”, como alguém depois disse dele. A 4 de Janeiro parte de Quelimane como piloto e capitão do bergantim General Silveira. Mas a carga era da pesada: 425 almas escravas invisíveis a quem os via. E, ao que parece, já não era a primeira, nem já era só o gosto da aventura que contava. Eles lá chegarão, ele não: trinta e oito dias depois uma moléstia fez “uma avaria total em toda a máquina” (sic) e lá se ficou ele algures no meio do Oceano e dos tubarões. Mal a notícia chega a Lisboa, a mãe, Maria da Encarnação, tenta provar no Juízo das Justificações Ultramarinas o direito à herança do filho. Passará nove anos nisso. Certidões e mais certidões que o gosto pela papelada não é de agora, testemunhas ouvidas e atestado de óbito pelo médico do navio apresentado, nada feito: o procedimento do dito atestado não era conforme as regras e nada lhe foi reconhecido que não o ele ser seu filho. Nada de novo, portanto. Quanto à herança, para além da memória descoberta agora algures, e por acaso, nada ao que se saiba restou. Não valeu mesmo a pena. Tão má fortuna, a dos como ele.
Mais de duzentos anos passados é a história de muitos, europeus e africanos, mães, filhos, pais e irmãos de um lado e de outro durante séculos. Com diferentes papéis e responsabilidades, cá e lá. E é à luz da História e do conhecimento do tempo e do espaço que esta e tantas outras têm que ser contadas e conhecidas. E que não desculpadas. De um modo ou de outro todos fazemos parte dela. Mas se o passado não perfeito não pode ser reparado, o presente e o futuro, esses sim, podem e devem ser tratados e preparados. Vem este relato a propósito do movimento que também em Portugal e em particular em Lisboa vem suscitando o tema das reparações históricas e da construção de um memorial de homenagem às vítimas curiosamente bem perto de onde a nossa personagem cresceu.
Verdade que houve, e até tarde demais, diria, demasiados Marcelinos e outras peças desse jogo. Que dramas humanos não imagináveis aos nossos olhos do século XXI aconteceram naquelas margens e naqueles navios. Nada disso, o que passou, pode hoje ser alterado. Mas a avidez ou o lucro que estavam na sua génese têm hoje outras formas sobre os homens, mulheres e crianças invisíveis de agora, tantos deles vindos também de África e mais recentemente da Ásia. A quem esses monumentos ou instalações nada dizem ou acrescentam. E a quem faltam planos objectivos e concretos de educação, proteção e integração. E sobram, como sempre, labirintos de burocracia e de desespero. Com as consequências que sabemos já visíveis em grande parte da Europa. É aí, e na dignidade como o Estado português e a sociedade civil, nomeadamente através de algumas das suas principais instituições, vão ser capazes (ou não) de agir relativamente ao fenómeno imigratório, ainda mais tantas vezes ilegal, que tem que estar o foco e a atenção. A nossa – ou da nossa geração – verdadeira, consciente e gigantesca responsabilidade histórica nesta matéria. A grande memória viva que está por conseguir fazer. A de uma sociedade de Homens visíveis e em que a agenda seja a da sua defesa e não, mais uma vez, a do seu aproveitamento. E histórias da nossa História comum que a ajudam a compreender.