Já toda a gente falou e escreveu sobre o assunto, mas há qualquer coisa, parece-me, que ninguém notou suficientemente. O assunto, é claro, é a demissão de Eduardo Cabrita. E o que me parece que não foi suficientemente notado é uma particular abjecção, mais profunda ainda que o notório grotesco da personagem.
“Eu sou passageiro” e “A viatura que me transportava foi vítima de um acidente”, disse Eduardo Cabrita, respectivamente na manhã e na tarde de sexta-feira passada, depois de o seu motorista ter sido acusado de homicídio por negligência no caso do acidente que vitimou Nuno Santos a 18 de Junho deste ano. É preciso reconhecer ao ex-ministro um génio vocabular particular e nunca desmentido. Sempre que abre a boca, depois de uma das trapalhadas em que se mete, consegue piorar a situação, acrescentando o grotesco à gravidade da situação. Desta vez foi, entre outras coisas, a forma delicada como, depois de uma mentirita (as obras na A6 não estariam sinalizadas), lançou a responsabilidade no seu motorista e descobriu que o seu carro tinha sido a vítima num acidente mortal. This piano has been drinking, not me, dizia pastosamente Tom Waits numa canção antiga.
Desde que se tornou conhecido do grande público, ao tirar repetidas vezes o microfone a um secretário de Estado de Passos Coelho, um episódio a todos os títulos memorável, que ele não falha. Não falhou, por exemplo, no caso das “golas de fumo”, fazendo notar aos jornalistas que eles se rodeavam de perigosos microfones combustíveis. E não falhou aquando do homicídio de Ihor Homenyuk por funcionários do SEF, lançando um sonoro “Bem-vindos ao combate pela defesa dos direitos humanos!” aos deputados que o interrogavam sobre o tristíssimo acontecimento. Não falha. Se pode acrescentar palavras que piorem a circunstância, não hesita por um instante e elas saem-lhe da boca com uma naturalidade estarrecedora. Se calhar, é isto que a sua mulher, a também ex-ministra Ana Paula Vitorino, quando se põe a falar “do Eduardo” com palavras que o pudor me impede de reproduzir aqui, chama “dar o peito às balas”. Parece-me modéstia, até porque em Portugal, a acreditar no hino, gostamos de marchar contra os canhões. O Eduardo, para aproveitar a sugestão de intimidade da esposa, é mais do género de desafiar, com virilidades tauromáquicas de forcado, obuses e tudo daí para cima.
Alguns chamam a isto arrogância. Francamente, não me parece. A arrogância, por mais complexas e equívocas que sejam estas coisas, supõe um sentimento, eventualmente perverso, de superioridade. Ora, nunca senti nada disso ao ver e ouvir Eduardo Cabrita. Muito pelo contrário. Ousaria até dizer: muitíssimo pelo contrário. O que transpareceu sempre do seu comportamento foi um palpável sentimento de inferioridade, próprio a alguém que vive muito mal na sua pele, julgando-se permanentemente acossado, e dolorosamente consciente das suas limitações e da sua incompetência. Daí, muito explicavelmente, a sua agressividade e a sua grosseria, defesas naturais de alguém que se imagina perseguido e que, ao mesmo tempo, sabe que não está à altura do cargo que ocupa.
Mas porque é que o deixaram tanto tempo a fazer aquelas figuras grotescas? Porquê deixar uma alma assim atormentada exibir em público o seu indisfarçável mal-estar? E quem é que assim quis que fosse? A última pergunta é a mais fácil de responder: António Costa, evidentemente. A partir daí, a resposta à primeira pergunta surge com toda a aparência do indubitável. A primeira pessoa a oferecê-la foi, tanto quanto sei, na televisão, há já algum tempo, José Miguel Júdice. Segundo ele, Costa precisaria de ter à sua volta um certo número de sacos de pancada que absorvessem as críticas feitas ao Governo e, de caminho, o protegessem a ele. Ora, quem melhor do que Eduardo Cabrita para ocupar um lugar cimeiro na distinta hierarquia dos sacos de pancada? Tinha todas as qualidades requeridas e mais algumas. A escolha era óbvia, tanto mais que gozava do excelente disfarce de uma velhíssima amizade, que a comunicação social gostosamente propagandeava. Costa protegeria Cabrita por causa desse nobre sentimento entre iguais.
É aqui que entra, forte e feia, a abjecção. Costa e Cabrita nunca foram iguais, no sentido de se colocarem no mesmo plano e de apresentarem excelências comuns. Visivelmente, um era o senhor, o outro o escravo. A dialéctica da abjecção encontrava um óptimo lugar para se manifestar. Como é que alguém se presta a entrar num jogo que o humilha quotidianamente para satisfazer os interesses de outra pessoa? E – sobretudo, muito sobretudo – como é que alguém não hesita em sacrificar de modo tão cruel uma outra pessoa em benefício exclusivo dos seus interesses próprios, ao mesmo tempo que só tem para o outro belas e doces palavras (“excelente ministro”, etc.)?
Decididamente, o que interessa politicamente nesta triste história não é certamente Cabrita, a não ser que a nossa curiosidade incida sobre os profundos mistérios que levam certos indivíduos às mais servis paixões. O que interessa politicamente é o que tudo isto nos revela sobre a ausência de limites na apetência pelo poder de António Costa. Porque, como é óbvio, se ele fez o que fez a Cabrita, tal não se deveu a um qualquer impulso sádico de que o outro seria um objecto preferencial. O que ele fez a Cabrita – a utilização do outro como um mero meio, sem nunca o considerar como um fim em si mesmo, para falar como um filósofo – faz-nos constantemente a todos nós. Portugal e os portugueses verosimilmente não lhe interessam senão como meio de perpetuar o seu poder. A abjecção – volto a insistir na palavra, porque me parece a mais justa – da relação de Costa com Cabrita não se distingue grandemente da abjecção da relação de Costa com os portugueses. Que, diga-se de passagem, em muitos casos partilham, até talvez por razões idênticas, a esquisita paixão humilhante do ex-ministro.